quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Dupla negação

Corre por aí a lenda de que, em língua portuguesa, duas negativas transformam a declaração em positiva. Como na matemática, menos com menos daria mais. Assim, em

O réu não tem nenhuma culpa”,

O sentido seria de que o “o réu tem culpa”.

Pior! Os versos de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

Não sou nada/nunca serei nada/não posso ser nada/à parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”

significariam: “Sou tudo/sempre serei tudo/posso fazer tudo”. Pobre Pessoa!

Português e matemática não compartilham a mesma lógica. Se nesta ciência menos como menos dá mais, em nosso idioma, menos com menos dá menos e, de quebra, reforça o significado negativo.

Tentar descobrir de onde surgem as lendas pode ser um caminho tortuoso. Nem sempre chegamos de fato à origem do mito. Sabemos, para o caso da dupla negação, que, em latim, duas negativas geram oração positiva. O que os inventores dessa história (ou estória) ignoraram é o fato de que a língua portuguesa, embora de raiz latina, tem características próprias. O latim foi o local de nascimento, não a criança. Herdamos muito do latim, mas deixamos muito de lado também. Como nossos filhos, a língua portuguesa é um ser independente.

Também não caia na tentação de jogar a culpa pela dupla negação na criatividade do português brasileiro. Não, trata-se de um traço do idioma, tanto aqui quanto em terras lusitanas ou além. É um recurso de ênfase. E mais, está presente no francês e em outras línguas do ramo latino.

Claro que poderíamos registrar, sem prejuízo semântico,

O réu não tem culpa”.

Observe, entretanto, que a ausência da dupla negação faz com que a oração perca a força argumentativa. Nossa língua nos oferece a possibilidade de dar às frases contornos que a dureza da escrita por vezes tenta negar. Temos uma língua rica em curvas e com possibilidades significativas imensas. Aproveitemos. Nãonenhum pecado nisso!

Até a próxima!



2 comentários: