Corre
por aí a lenda de que, em língua portuguesa, duas negativas
transformam a declaração em positiva. Como na matemática, menos
com menos daria mais. Assim, em
“O réu não tem nenhuma
culpa”,
O
sentido seria de que o “o réu tem culpa”.
Pior!
Os versos de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)
“Não sou nada/nunca
serei nada/não posso ser nada/à parte disso, tenho em
mim todos os sonhos do mundo”
significariam:
“Sou tudo/sempre serei tudo/posso fazer tudo”. Pobre Pessoa!
Português
e matemática não compartilham a mesma lógica. Se nesta ciência
menos como menos dá mais, em nosso idioma, menos com menos dá menos
e, de quebra, reforça o significado negativo.
Tentar
descobrir de onde surgem as lendas pode ser um caminho tortuoso. Nem
sempre chegamos de fato à origem do mito. Sabemos, para o caso da
dupla negação, que, em latim, duas negativas geram oração
positiva. O que os inventores dessa história (ou estória) ignoraram
é o fato de que a língua portuguesa, embora de raiz latina, tem
características próprias. O latim foi o local de nascimento, não a
criança. Herdamos muito do latim, mas deixamos muito de lado também.
Como nossos filhos, a língua portuguesa é um ser independente.
Também
não caia na tentação de jogar a culpa pela dupla negação na
criatividade do português brasileiro. Não, trata-se de um traço do
idioma, tanto aqui quanto em terras lusitanas ou além. É um recurso
de ênfase. E mais, está presente no francês e em outras línguas
do ramo latino.
Claro
que poderíamos registrar, sem prejuízo semântico,
“O réu não tem culpa”.
Observe,
entretanto, que a ausência da dupla negação faz com que a oração
perca a força argumentativa. Nossa língua nos oferece a
possibilidade de dar às frases contornos que a dureza da escrita por
vezes tenta negar. Temos uma língua rica em curvas e com
possibilidades significativas imensas. Aproveitemos. Não há
nenhum pecado nisso!
Até
a próxima!
Brilhante. Muito obrigada.
ResponderExcluirObrigada, Karen, pelo comentário!
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