sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Mal-afamado gerúndio

Há quem diga que ele veio de outras terras, que não nos pertence, querem-no exilado no seu galicismo original. Mas, cá entre nós, redatores jurídicos, ele nos cabe tão bem, veste perfeitamente nossos textos, como pode não ser nosso? Pois bem, a nosso favor temos autores de renome como Said Ali, Evanildo Bechara, Cláudio Brandão, entre outros. Partiremos deles, então.

O gerúndio, segundo nosso Bechara, ocorre quando:

1. indica uma atividade passageira:

O juiz estava trajando vestes talares.

2. indica uma atividade permanente, qualidade essencial, própria das coisas:

Foi publicada a Medida Provisória 797/2017, liberando (por meio da qual foram liberados) os saldos das contas do PIS/Pasep para homens com idade a partir de 65 anos e mulheres a partir de 62.

Há muito livros contendo (que contêm) informações equivocadas sobre o gerúndio.

3. exprime um fato imediato:

Recomendou uma ação mais precisa, apresentando (e apresentou) soluções.

4. em sentido causal:

Vendo (porque visse) que estava sem saída, apelou para atitudes espúrias.

5. em sentido consecutivo:

A multidão foi tomada por desespero, atropelando (como consequência atropelavam tudo) o que encontrava pela frente.

6. em sentido concessivo:

Vivendo (embora viva) sempre a mesma rotina, ainda me surpreendo com as novidades dos dias.

7. em sentido condicional:

Pagando (se pagarmos) todos as dívidas, teremos finalmente tranquilidade.

8. em sentido de modo, meio, instrumento.

Ele não poderia mostrar suas competências musicais senão dedilhando o piano com a habilidade que lhe é típica.

9. em sentido temporal:

Visitando (quando visitar) Belo Horizonte, ligue-me.
Chegando (ao chegar), encontrou apenas infortúnio.

Em todos esses exemplos, o gerúndio está bem empregado e oferece variadas possibilidades semânticas. É justamente na versatilidade dessa forma nominal que mora o perigo. Podemos cair na tentação de usá-lo em excesso, o que torna o texto cansativo e, de quebra, demonstra certa pobreza criativa na elaboração do texto. Assim, um recurso elegante, que promove a coesão textual, porque mantém o sentido desejado sem o uso de conjunções, passa a ser sinônimo de pouco cuidado com a escrita. Então, usemos com parcimônia e estilo, assim recuperaremos esse pobre mal-afamado.

Mas a má fama não acaba tão fácil. Por essa razão, retomaremos o tema na próxima coluna.

Até a próxima!
















sexta-feira, 18 de agosto de 2017

O não e o hífen

Uma mosquinha de dúvida costuma sussurrar em nossos ouvidos, quando, como é comum em textos jurídicos, temos que escrever palavras como “não contradição”, “não cumprimento”, entre tantas outras antecedidas por não.

Segundo o Acordo Ortográfico de 1990, “Não se emprega o hífen com as palavras não e quase com função prefixal: não agressão, não beligerante, não fumante, não periódico, não violência, não participação; quase delito, quase domicílio, quase equilíbrio, etc.” (Adendo 1, Base XVI).

Os dicionários Houaiss e Aurélio acolhem a decisão consignada no Acordo e registram sem hífen as palavras antecedidas por não. Mas essa regra não foi acatada por todos os dicionários nem por todos os estudiosos e produtores de conteúdo sobre língua portuguesa (manuais, blogs). O dicionário on-line Priberam, de origem lusitana, registra, por exemplo, “não agressão”, mas apresenta nota sobre a grafia em Portugal, que permanece com hífen. Uma simples pesquisa no Google pode levar o pobre redator para uma miríade de argumentos contra e pró hífen. E quase todos muito bem fundamentados. O que fazer, então?

Todos temos nossas pedras no meio do caminho. O hífen é certamente uma das grandes, mas não incontornáveis. Se estamos em um ambiente institucional, melhor usar o que é mais oficial. Assim, evite o hífen em palavras inciadas por não. Problema resolvido. Na hora da dúvida, é só cortar o hífen. Lembremo-nos de que os textos oficiais devem seguir o padrão ortográfico. Somos referência, por isso devemos evitar as variações estilísticas.

Mas… Sempre tem um “mas” para nos fazer pensar.

Em “Nota explicativa”, a Comissão de Lexicologia e Lexicografia da Academia Brasileira de Letras – ABL, na edição de 2009 do VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), traz o seguinte comentário:

Está claro que, para atender a especiais situações de expressividade estilística com a utilização de recursos ortográficos, se pode recorrer ao emprego do hífen nestes e em todos os outros casos que o uso permitir. É recurso a que se socorrem muitas línguas. Deste não hifenado se serviram no alemão Fichte e Hegel para exercer importante função significativa nas respectivas terminologias filosóficas: nicht-sein e nicht-ich, de que outros idiomas europeus se apropriaram como calcos linguísticos. Não é, portanto, recurso para ser banalizado.

Ora, se o espírito do Acordo visa à simplificação, parece-nos natural que os sinais diacríticos (sinais gráficos) sejam mais restritos, mas isso está longe de uma proibição de uso. Não podemos nos esquecer que, fora das amarras formais, tudo pode ser experimentado criativamente na língua ou mantido historicamente. Por exemplo, quem trata de temas filosóficos dificilmente vai se permitir escrever “não-ser” sem hífen, apesar da sugestão da ABL. Afinal, esse é um registro com força semântica inegável e profundamente ligado a um conceito filosófico claro e que se replica em outras línguas. Guardemos também que o hífen “não é, portanto, recurso para ser banalizado”. Bom é que o texto seja claro. Eis o nosso objetivo!


Até a próxima!

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Dupla negação

Corre por aí a lenda de que, em língua portuguesa, duas negativas transformam a declaração em positiva. Como na matemática, menos com menos daria mais. Assim, em

O réu não tem nenhuma culpa”,

O sentido seria de que o “o réu tem culpa”.

Pior! Os versos de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

Não sou nada/nunca serei nada/não posso ser nada/à parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”

significariam: “Sou tudo/sempre serei tudo/posso fazer tudo”. Pobre Pessoa!

Português e matemática não compartilham a mesma lógica. Se nesta ciência menos como menos dá mais, em nosso idioma, menos com menos dá menos e, de quebra, reforça o significado negativo.

Tentar descobrir de onde surgem as lendas pode ser um caminho tortuoso. Nem sempre chegamos de fato à origem do mito. Sabemos, para o caso da dupla negação, que, em latim, duas negativas geram oração positiva. O que os inventores dessa história (ou estória) ignoraram é o fato de que a língua portuguesa, embora de raiz latina, tem características próprias. O latim foi o local de nascimento, não a criança. Herdamos muito do latim, mas deixamos muito de lado também. Como nossos filhos, a língua portuguesa é um ser independente.

Também não caia na tentação de jogar a culpa pela dupla negação na criatividade do português brasileiro. Não, trata-se de um traço do idioma, tanto aqui quanto em terras lusitanas ou além. É um recurso de ênfase. E mais, está presente no francês e em outras línguas do ramo latino.

Claro que poderíamos registrar, sem prejuízo semântico,

O réu não tem culpa”.

Observe, entretanto, que a ausência da dupla negação faz com que a oração perca a força argumentativa. Nossa língua nos oferece a possibilidade de dar às frases contornos que a dureza da escrita por vezes tenta negar. Temos uma língua rica em curvas e com possibilidades significativas imensas. Aproveitemos. Nãonenhum pecado nisso!

Até a próxima!



quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Às vezes as palavras explicam

"O imperdoável pecado da democracia, aos olhos de um número crescente de seus supostos beneficiários, é o seu fracasso em cumprir promessas e sua busca de uma desculpa para isso na fórmula 'Tina' (de 'There Is No Alternative'), significando 'não podemos fazer de outro jeito': o conceito de 'parlamento', afinal, deriva de parler ('falar', 'discorrer') - não de 'conseguir que as coisas sejam feitas'. A atração exercida pelos candidatos ao papel de tiranos ou tiranas consiste em sua promessa de agir - ainda que sua única ação até o momento seja falar e discorrer -, assim como no fato de que o assunto sobre o qual falam e discorrem seja que podem fazer de outra forma, que existe uma alternativa, que eles são a alternativa. Enfim, o poder de sedução dos tiranos e tiranas baseia-se em todas essas promessas e em aspirações que até agora não foram testadas." 
(Zygmunt Bauman, em Estranhos à nossa porta)

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Estado-membro ou estado membro?


Há palavras ou conjuntos de palavras que nascem fadadas à polêmica, mesmo quando frequentam os bancos da ONU. Esse parece ser o caso da sequência “estados membros”.

Em tempos passados, *“estado-membro” era grafado assim, com hífen. Após o Acordo Ortográfico de 1990, o hífen, nesse caso, deixou de existir. Segundo os estudiosos, o espírito do Acordo previa a manutenção do hífen apenas nos casos necessários. Assim, a ele recorreríamos na justaposição sem termo de ligação, para distinção de prefixo, entre outros requisitos.

Em relação ao vocábulo em questão, o hífen não indica a justaposição de palavras, pois não houve a criação de um sentido completamente novo e específico que justificasse a marca gráfica.

Observe, por exemplo, o artigo 3 da Constituição da Organização Internacional para Migrações (Decreto n. 8.101/2013). Se “estado membro” fosse grafado com hífen, não ocorreria nenhuma mudança semântica.

Todo Estado Membro poderá notificar sua retirada da Organização ao final de um exercício anual. Esta notificação deverá ser feita por escrito e chegar ao Diretor Geral da Organização pelo menos quatro meses antes do final do exercício (...).
*Todo Estado-Membro poderá notificar sua retirada da Organização ao final de um exercício anual. Esta notificação deverá ser feita por escrito e chegar ao Diretor Geral da Organização pelo menos quatro meses antes do final do exercício (...).


Não podemos fazer a mesma afirmação para a palavra “amor-perfeito”. Note que tanto “amor” como “perfeito” têm vida significativa própria. Se aparecem juntos, como em:
Eles cultivam um amor perfeito. (qualidade do amor)

perfeito” exerce o papel de qualificador de “amor”. No entanto, ao unimos esses dois vocábulos por um hífen, nasce um significado, que descreve um objeto novo. Assim, temos:

Eles cultivam amor-perfeito. (tipo de flor)

Sim, está claro que “estado membro” deve ser grafado sem hífen. Não porque seja um erro, mas por assim estar previsto no Acordo Ortográfico de 1990.

É importante lembrar que o Brasil é signatário desse acordo. Significa dizer que nossa ortografia acata ativamente o disposto nesse documento. Podemos até não concordar com tudo que propõe a reforma, mas já estamos nela e talvez seja hora de nos adaptarmos.

Atenção! Apesar de “estado membro” não ser grafado com hífen, “país-membro” permanece com o hífen (!!!). Isso mesmo. Na dúvida quanto à grafia, sempre consulte o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), disponível na internet.

Atenção!! Em Portugal, apenas lá, “estado-membro” é grafado com hífen, quando se trata de estado membro da União Europeia. Decisão deles, somente para eles. Ressaltamos que o Vocabulário Comum da Língua Portuguesa (VOC), disponível na internet, não atesta a escrita desse vocábulo com hífen.

Atenção redobrada!!! Há órgãos oficiais que, em seus tesauros ou vocabulários controlados, grafam “estado membro” com hífen. Isso é um problema. Uma vez signatário do Acordo, o Brasil oficialmente acata essa ortografia. Logo, os órgãos oficiais devem ser os primeiros a seguir a norma e com isso torná-la mais conhecida. Assim evitamos duplicidade de grafias. Críticas à parte!

Até a próxima!



* grafia não oficial.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Uso do porque muito além do Tejo

Porque
  • Quando usado com sentido de uma vez que, pois, já que, como, porquanto, visto que e por essas expressões puder ser substituído, funciona como conjunção causal, e deve ser grafado “porque”.
O réu foi condenado, porque o crime foi plenamente comprovado.
  • Também será grafado “porque” nas frases declarativas e em respostas, quando não for possível subtender a palavra “motivo”.
Por quê? Porque simplesmente assim o desejei.

Atenção! “Porquê” ocorre quando tem valor de substantivo, normalmente precedido por artigo. Assim, temos:

Ele não sabe o porquê de tanta confusão.
Por que
  • Com sentido interrogativo.
Por que tantas mentes sedentas pelo saber?
  • Como pronome relativo que pode ser substituído por pelo qual, pela qual, pelos quais, pelas quais.
Desconheço a razão por que não foste delicado com aquela pessoa.


O reclamado não reconhece por que foi condenado.


Observe que a palavra “motivo” está subentendida na segunda frase, isto é, o reclamado não reconhece o motivo pelo qual foi condenado.


Em casos como esse, o registro será “por que” separado.


Atenção! “Por quê” ocorre em fim de frase, por razões de tonicidade. Assim, temos:


O réu foi condenado por quê?


Teve que sair, mas não me disse por quê.


Atenção redobrada!!! Apesar de toda essa explicação, plenamente válida segundo o nosso padrão ortográfico, lá pelas bandas do Tejo as coisas não são bem assim. Em Portugal, pode-se perguntar com “porque” junto. Por isso, quando encontrar pergunta iniciada pelo espantoso “porque”, antes de julgar o dedicado redator, verifique se não se trata de uma edição lusitana, representativa do português europeu. Aqui por nossas bandas esse uso permanece condenável. São nossas saborosas diferenças construídas ao longo da história.


Parafraseando o poeta Petrarca: navegar é preciso, escrever não é preciso.



Até a próxima!

Pontuação: “e”, “e sim”, “ou”


E

Quando a conjunção coordenada “e” somar orações com mesmos sujeitos, não há vírgula. Vejamos:

O juiz prolatou a sentença e encerrou o julgamento.

Observe que os verbos prolatar e encerrar têm como sujeito juiz, logo a conjunção apenas soma duas ações em torno de um único personagem.
Agora observe o exemplo a seguir:

O juiz absolveu o réu, e a multidão manifestou-se contra a decisão.

Veja que há sujeitos diferentes para os verbos absolver e manifestar-se. Nesse caso, as orações devem ser separadas por vírgula, como se demarcássemos dois blocos de informação, que, embora se relacionem, não têm dependência sintática.


E sim

A expressão “e sim” é indivisível. A vírgula vai ser registrada, quando couber, antes do “e”.

O advogado do réu não buscava a defesa do cliente, e sim ferir a face da vítima.

Observe que, no exemplo, “e sim” tem sentido de “mas”.

Se o redator deseja usar “mas” no lugar do “e”, sugere-se que a expressão seja registrada entre vírgulas. Veja o exemplo a seguir:

O advogado do réu não buscava a defesa do cliente, mas, sim, ferir a face da vítima.


Ou

Se o texto traz alternativa, em que pode ser realizada uma ou outra ação, sem que uma necessariamente exclua a outra, não haverá vírgula. Observe:

O advogado não decidiu se vai alegar legítima defesa ou provar violenta emoção.[1]*

Se uma ação exclui a outra, a conjunção ou tem papel disjuntivo, por isso exige a vírgula.

O menor absolutamente incapaz será representado pelos pais, ou por seu tutor.”


Até a próxima!