Hoje,
para embelezar nossa coluna semanal, leia em voz alta, se possível,
o seguinte verso do poema Primaveras, de Casimiro de Abreu:
Durante a noite quando
o orvalho desce.
Observe
que o fonema [o] quase é pronunciado de uma vez só. Percebeu? Isso
é crase. Segundo Bechara, a crase é um fenômeno fonético que
ocorre quando há “fusão de duas ou mais vogais iguais”. É
algo muito natural, talvez por isso outro poeta* mais contemporâneo
tenha afirmado que “a crase não foi feita para humilhar ninguém”!
Por
ser um fenômeno da fala, em textos escritos, precisa ser
graficamente marcado. Em nossa língua, essa marca acontece quando a
preposição “a”, que integra um verbo ou um nome (substantivo ou
adjetivo), se encontra com o artigo definido feminino “a”, que
antecede uma palavra feminina, ou com um pronome demonstrativo de 3ª
pessoa aquele, aquela e aquilo. Se não há o
encontro, não ocorre a crase. Examine o quadro a seguir:
Sujeito
|
Verbo/nome
|
Preposição
|
Artigo/
demonstrativo
|
Complemento
|
Crase
|
Este
documento
|
deve
ser anexado
|
a
|
a
|
petição
inicial
|
à
|
O
tema
|
relaciona-se
|
a
|
___
|
normas
em geral
|
___
|
(nós)
|
referimo-nos
|
a
|
aqueles
|
garantidos
pela Constituição
|
Àqueles
|
A
empresa
|
comprovou
|
___
|
a
|
quitação
da dívida
|
___
|
As
três primeiras orações apresentam a preposição “a”. Na
primeira , o artigo serve para indicar que se trata de uma petição
específica, a inicial. Já na terceira oração o demonstrativo
“aqueles” restringe os direitos ali referidos. Observe que artigo
e demonstrativo singularizam o referente. No segundo caso não ocorre
a crase, porque somente a preposição de “referir-se” está
presente, uma vez que as normas de que trata o verbo não são
específicas. Diversamente das demais orações, o verbo da quarta
oração tem regência direta, portanto dispensa preposição.
Em
resumo, o sinal indicativo [`] de crase deve ser usado para evitar a
duplicidade de “a” e, ao mesmo tempo, manter íntegras as
características sintático-semânticas apontadas pela presença da
preposição e do artigo ou de demonstrativo no texto escrito. Assim,
teremos:
1. Este documento deve ser
anexado à
petição inicial.
2. O tema relaciona-se a
normas em geral.
3. Quando tratamos
de direitos individuais, referimo-nos àqueles
garantidos pela Constituição.
4. A empresa comprovou a
quitação da dívida.
Fica
a dica: decomponha a oração. Para tanto, verifique se a regência
do verbo ou do nome exige a preposição “a”; em seguida avalie
se o complemento é introduzido por um artigo feminino ou por um
pronome demonstrativo de 3ª pessoa. Atenção dobrada para o fato de
que a presença ou não do artigo é eletiva e está na ordem do
sentido que o redator quer dar ao texto. Portanto, é preciso saber
bem o que se quer escrever. Ao seguir esses passos, as regras
decoradas são desnecessárias e o céu é o limite!
Terminamos
por hoje com mais um aforismo de Ferreira Gullar:
“Quem
tem frase de vidro não joga crase na frase do vizinho”.
Até
a próxima!
*
Uns
craseiam, outros ganham fama, de Ferreira Gullar
– texto
de onde foram extraídos os aforismos.