sexta-feira, 26 de maio de 2017

Crase


Hoje, para embelezar nossa coluna semanal, leia em voz alta, se possível, o seguinte verso do poema Primaveras, de Casimiro de Abreu:

Durante a noite quando o orvalho desce.

Observe que o fonema [o] quase é pronunciado de uma vez só. Percebeu? Isso é crase. Segundo Bechara, a crase é um fenômeno fonético que ocorre quando há “fusão de duas ou mais vogais iguais”. É algo muito natural, talvez por isso outro poeta* mais contemporâneo tenha afirmado que “a crase não foi feita para humilhar ninguém”!

Por ser um fenômeno da fala, em textos escritos, precisa ser graficamente marcado. Em nossa língua, essa marca acontece quando a preposição “a”, que integra um verbo ou um nome (substantivo ou adjetivo), se encontra com o artigo definido feminino “a”, que antecede uma palavra feminina, ou com um pronome demonstrativo de 3ª pessoa aquele, aquela e aquilo. Se não há o encontro, não ocorre a crase. Examine o quadro a seguir:

Sujeito
Verbo/nome
Preposição
Artigo/
demonstrativo
Complemento
Crase
Este documento
deve ser anexado
a
a
petição inicial
à
O tema
relaciona-se
a
___
normas em geral
___
(nós)
referimo-nos
a
aqueles
garantidos pela Constituição
Àqueles
A empresa
comprovou
___
a
quitação da dívida
___

As três primeiras orações apresentam a preposição “a”. Na primeira , o artigo serve para indicar que se trata de uma petição específica, a inicial. Já na terceira oração o demonstrativo “aqueles” restringe os direitos ali referidos. Observe que artigo e demonstrativo singularizam o referente. No segundo caso não ocorre a crase, porque somente a preposição de “referir-se” está presente, uma vez que as normas de que trata o verbo não são específicas. Diversamente das demais orações, o verbo da quarta oração tem regência direta, portanto dispensa preposição.

Em resumo, o sinal indicativo [`] de crase deve ser usado para evitar a duplicidade de “a” e, ao mesmo tempo, manter íntegras as características sintático-semânticas apontadas pela presença da preposição e do artigo ou de demonstrativo no texto escrito. Assim, teremos:

1. Este documento deve ser anexado à petição inicial.

2. O tema relaciona-se a normas em geral.

3. Quando tratamos de direitos individuais, referimo-nos àqueles garantidos pela Constituição.

4. A empresa comprovou a quitação da dívida.

Fica a dica: decomponha a oração. Para tanto, verifique se a regência do verbo ou do nome exige a preposição “a”; em seguida avalie se o complemento é introduzido por um artigo feminino ou por um pronome demonstrativo de 3ª pessoa. Atenção dobrada para o fato de que a presença ou não do artigo é eletiva e está na ordem do sentido que o redator quer dar ao texto. Portanto, é preciso saber bem o que se quer escrever. Ao seguir esses passos, as regras decoradas são desnecessárias e o céu é o limite!

Terminamos por hoje com mais um aforismo de Ferreira Gullar:

Quem tem frase de vidro não joga crase na frase do vizinho”.

Até a próxima!

* Uns craseiam, outros ganham fama, de Ferreira Gullartexto de onde foram extraídos os aforismos.







segunda-feira, 22 de maio de 2017

Citação de folhas


Nos textos jurídicos, especialmente em petições, acórdão e sentenças, vemos registros variados para a abreviação de “folhas”. Relembremos algumas regras sobre esse assunto.

1. A abreviatura oficial usada é:

para folha – fl.
para folhas – fls.

2. A fls./à fl./na fl./de fl. são expressões usadas em referência a uma só folha.
Exemplos

A Procuradoria Regional do Trabalho apresentou parecer a fls. 125 (nesse caso, o parecer está a cento e vinte cinco folhas do início do texto; lê-se a folhas cento e vinte e cinco).

O documento anexado à fl. 71 (lê-se à folha setenta e um).

Em relação à participação do sindicato, consignou esta SDC, na fl. 58, que não houve a participação do Sindicato (lê-se na folha cinquenta e oito).

A procuração de fl. 41 não é válida.

3. Às fls./nas fls./de fls. só devem ser usadas em referência a duas ou mais folhas.

O reclamante anexou os contracheques às fls. 13-14.

O autor interpõe recurso nas fls. 47 e 48.

O reclamado recorreu da decisão de fls. 75-79.


Atenção! Embora alguns manuais de redação condenem o uso de “f.” como redução de “folha”, o Vocabulário Ortográfico de Língua Portuguesa – VOLP identifica o uso em muitos textos, para representar significados diversos, tais como: feminino, folha, forte, frase. Recomendamos, entretanto, o uso de fl. e fls. por ser de uso mais frequente em textos jurídicos.


Até a próxima!

sexta-feira, 12 de maio de 2017

A vírgula e algumas conjunções


As conjunções, segundo Bechara, "têm por missão reunir orações num mesmo enunciado". Para pensar um pouco sobre isso, vejamos a seguir o trecho extraído de uma sentença.

"O ônus probatório ficou a cargo do Empregado, que do mesmo não logrou desincumbir-se, pois, não conseguiu produzir prova”.

O vocábulo pois entre vírgulas deixa de cumprir o papel, típico das conjunções, de unir os dois segmentos do período: não logrou desincumbir e não conseguiu produzir provas. Lembremos sempre que termos entre vírgulas não compõem a estrutura principal da oração.
A ligação promovida pela conjunção é essencial para a clareza do texto. A conjunção auxilia na construção de sentido, porque contém um significado (seja adversativo, seja conclusivo). A vírgula, por seu turno, separa os dois segmentos para destacar a independência sintática entre as orações. Vírgula e conjunção trabalham juntas para a coesão e a coerência textual.
Assim, a forma mais adequada seria

O empregado não logrou desincumbir-se, pois não conseguiu produzir a prova.”


Essa regra serve para boa parte das conjunções que encabeçam orações. Podemos incluir nesse grupo: pois, portanto, então, assim, entretanto, todavia, mas, porém, contudo, no entanto, porquanto etc. Nesses casos, a vírgula é registrada antes da conjunção, como no exemplo acima. Agora observe outro exemplo extraído de um acórdão.

A reclamante alega que a pré-contratação de horas extraordinárias do bancário afronta o disposto no art. 224 da CLT, pois a jornada está limitada a seis horas. Sustenta que a pré-contratação de duas horas extraordinárias permanentes ofende o art. 225 da CLT, porquanto a contratação (...)”.


Guardemos este memento: onde houver vírgula, que eu tenha atenção!

Até a próxima!







quinta-feira, 4 de maio de 2017

Vírgula e grafia de horas

Esta semana vamos analisar um trecho de sentença. Dessa forma é possível visualizar alguns dos problemas com os quais nos defrontamos em nosso ofício.
Observe.

“O Reclamante alega que nos primeiros seis meses laborou das 07h às 17h (2), de segunda a quinta e sexta até às 16h, com intervalo de 01 hora e, de junho/2010 até julho/2012, quando exercia a função de porteiro, sua jornada era 12x36, das 18h às 06h e, após, das 07h às 19h ou das 08h às 20h, ou ainda, das 10h às 22h.”

1. Pontuação

“O Reclamante alega que nos primeiros seis meses laborou...”

Lembremo-nos da ordem lógica de nossa língua: sujeito + verbo + objeto [circunstância]. A circunstância (indicadora de lugar, modo, tempo, intensidade, condição, etc) aparece naturalmente no final da oração. A língua portuguesa, no entanto, é rica e permite variadas formas de encaixar as circunstâncias em uma oração. Essa mobilidade, entretanto, deve ser marcada por vírgulas.
Assim, teremos:

“O Reclamante alega que, nos primeiros seis meses, laborou...”, em que “nos primeiros seis meses” é a circunstância de tempo deslocada. Note também que, apesar das vírgulas, a estrutura SVO não foi quebrada, pois há apenas uma intercalação entre os constituintes.

2. Grafia de horas

Há algumas regras para o registro de horas. Vejamos:
a) Os símbolos: horas – h, minutos – min, segundos – s, tudo sem ponto, sem espaço entre o número e o símbolo. Assim teremos: 7h10min5.
b) Hora de apenas um dígito dispensa o uso do zero antecedente, portanto basta 7h10.
c) Na menção de horas apenas, usa-se a palavra hora(s) por extenso: “laborou das 7 às 17 horas”.
d) Na menção de horas e minutos, usa-se o símbolo de horas (h), mas não o de minutos (min): 7h10.
e) Na menção de horas, segundos e minutos, usam-se os símbolos de horas e minutos, mas não de segundos: 7h10min5.

A seguir transcrevo a grafia correta das horas e apresento uma proposta de reescritura do texto:

“O Reclamante alega que, nos primeiros seis meses, laborou das 7 às 17 horas, de segunda a quinta, e até as 16 horas, nas sextas, com intervalo de uma hora. Acrescenta que, de junho de 2010 a julho de 2012, passou a exercer a função de porteiro, com jornada de 12x36, das 18 às 6 horas, das 7 às 19 horas, das 8 às 20 horas ou das 10 às 22 horas.”

Acredito que esse parágrafo ainda possa ser aprimorado, sempre é possível. A medida da qualidade de nossos textos é o nível de compreensão do leitor. Afinal, escrever é esse exercício estranho de sair de si e tentar ver pelo olhar do leitor. Tarefa árdua, é claro, mas muito compensadora.

Até a próxima!