segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Me-só-cli-se

As línguas têm ritmo. As variações melódicas nos contam da origem de um falante, das intenções, se dramáticas, se cômicas, e contribuem para caracterizar cada língua. A essa musicalidade chamamos prosódia.

O português, por exemplo, tende a ser paroxítono. Isso promove em nosso idioma uma sequência mais frequente de átono + tônico + átono. E cá para nós, essa característica prosódica torna nossa língua muito boa de ouvir, muito musical.

E o ritmo passa pela palavra e chega a frases e períodos, num todo melódico. Portanto, quando pensamos em colocação de pronomes átonos, devemos ter em mente que também se refere a ritmo e que, se átono, o termo deverá estar ao lado de um tônico. O tônico, no caso dos pronomes átonos, são os verbos. Por essa razão temos ênclise, próclise e mesóclise, formas de posicionamento na oração desses átonos em relação ao verbo.

A mesóclise é a possibilidade de colocação pronominal que ocorre apenas diante de verbos no futuro do presente ou no futuro do pretérito (condicional). Nesses casos o pronome átono se posiciona no meio do verbo.

A cerimônia realizar-se-á amanhã.

Comprometer-me-ia, mas não devo.

Mas nem sempre foi assim. A mesóclise era a colocação do pronome entre dois verbos. Isso mesmo. O futuro era construído com o verbo no infinitivo somado ao indicativo do verbo haver. Isso foi há muito tempo. Então, tínhamos:

A cerimônia haverá de realizar-se.

Havia de comprometer-me, mas não devo.

Com o tempo, a função infinitiva fixou-se no verbo principal. Mas a ideia de que havia mais um verbo na construção permaneceu em nossa consciência linguística. Por isso que não temos mesóclise em outros tempos verbais, porque ela é o resquício da formação original de futuro. Na prática, aplicamos a mesóclise como se fossem dois verbos. Por essa razão, incluímos o pronome átono entre a desinência de infinitivo e as desinências de tempo e pessoa, replicando aquela forma do passado. Interessante, não?

Inegavelmente esse tipo de construção sugere mais formalidade, nem que seja no imaginário de quem escreve ou lê. Talvez por isso ainda seja possível encontrá-la aqui e ali em textos jurídicos. Não é errado, mas não é o mais comum em nossa língua. O próprio Evanildo Bechara já aponta para a possibilidade de se optar pela próclise quando nas situações de futuro.

Assim, podemos dizer

A cerimônia se realizará amanhã.

Veja que sem a mesóclise a frase soa mais natural. De outra forma, tende a ser interpretada como antiquada ou afetada. E, quando escrevemos, a recepção de nosso texto deve ser levada em conta, principalmente em se tratando de textos oficiais. Conquistar a adesão do leitor não é tarefa fácil.

Por essa razão, apesar de não constituir erro o uso da mesóclise, não a recomendamos para os textos oficiais, representativos de uma instituição ou empresa. A sugestão é de que o texto seja reconstruído de forma que a mesóclise seja evitada.

Até a próxima!


Fontes básicas:
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
CÂMARA JR., J.M. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975.
CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.


segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Colocação pronominal: próclise

O usuário da língua normalmente não erra na colocação nominal. É tão natural. Os pronomes fluem em nosso linguajar. O problema aparece quando escrevemos. Na dúvida, inventamos malabarismos para tudo parecer mais certo, em vez de seguir a intuição, tão espontânea, que aponta o melhor caminho. Portanto, caro redator, sinta o texto, perceba se não soa estranho, e siga em frente. As regras, para a colocação pronominal, servem como indicadores de tendência, só isso. Se a intuição não for suficiente, aí vão algumas situações em que próclise ocorre com mais frequência.

Próclise

A próclise ocorrerá com mais frequência nos seguintes casos:

1. diante de palavras negativas (não, nunca, jamais, ninguém, nada, etc.)

Jamais o vi tão abatido.

2. em orações iniciadas por pronomes ou advérbios interrogativos

Por que te lembrastes dele agora?

Como me magoastes tanto?

3. com gerúndio regido da preposição em

Em se tratando de vida humana, nada pode ser desconsiderado.

4. diante de certos advérbios (bem, mal, ainda, já, sempre, só, tá,vez, etc.) ou expressões adverbiais

me parecia suficiente tudo que fora dito.

Depois se sentou para descansar.

5. diante do numeral ambos ou de pronomes indefinidos (tudo, todo, outro, alguém, outro, qualquer, etc.)

Alguém me chamou.

Ambos se sentiam culpados.

Todos as mulheres se manifestaram.

Observem, diletos leitores, que entre o que aprendemos na escola e o que de fato ocorre na língua há um abismo. Na Idade Média, a colocação pronominal era uma questão sem conflito para os usuários da língua. Próclise e ênclise se alternavam de forma fluida. Com o passar do tempo, Portugal e Brasil tomaram rumos diversos. Enquanto aqui seguimos o uso mais corrente da próclise, por lá a ênclise tornou-se comum. Ninguém está mais certo nessa história, porque ambos países se distanciaram da língua inicial (se é que existe um início), o que é perfeitamente normal e esperado. Afinal, tudo evolui. Se formos perseguir o início, teremos que chegar à língua adâmica. E nós já aprendemos que “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”.

Até a próxima!


Fontes básicas:
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.




sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Colocação pronominal: ênclise


Sempre ouvimos falar que o nosso idioma é preferencialmente enclítico, ao contrário do espanhol, por exemplo, para o qual se indica como padrão a próclise: “me gusta”, “me encanta”.

Assim, em português, devemos posicionar o pronome depois do verbo. Consideram-se, segundo esse pensamento, equivocadas expressões como:

Me empresta esse livro? / Me liga amanhã.

Ora, a língua é plástica. As escolhas tanto vocabulares quanto sintáticas se pautam por situações, meios, plataformas, formalidade ou informalidade. Então, entre o cotidiano “me empresta” e os usos nos textos atuais é possível perceber mudanças ou flexibilização da colocação pronominal.

Mesmo as gramáticas canônicas lançam um olhar mais amplo sobre o tema. Evanildo Bechara, por exemplo, na Moderna Gramática Portuguesa, aponta que

durante muito tempo viu-se o problema apenas pelo aspecto sintático, criando-se a falsa teoria da 'atração' vocabular do não, do quê, de certas conjunções e tantos outros vocábulos. Graças a notáveis pesquisadores (...) passou-se a considerar o assunto pelo aspecto fonético-sintático.

O autor quer deixar claro que não se trata de mera atração. O que nos obriga a colocar o pronome antes do verbo (próclise) é a eufonia, não uma regra pura e simples. Observem as orações abaixo:

Ele não me contou nada. / Ele não contou-me nada.*

Ambas estão claras, mas a primeira nasce mais naturalmente. Então, o usuário determina a regra, não o contrário. É ele quem percebe o idioma.

Das gramáticas mais conhecidas extraímos sugestões para uso da ênclise que levam em consideração aspectos sintáticos, portanto mais fixos:

a) se o pronome for objeto do verbo

Mesmo com todas as dificuldades, deram-lhe o que era necessário.

b) quando o pronome tem a forma “o” ou “a” e o infinitivo vem regido da preposição “a”

Se soubesse, não continuaria a lê-lo. (R. Barbosa)

Começaram a imitá-la.

c) nas locuções verbais em que o verbo principal está no infinitivo ou gerúndio

O candidato veio interromper-me.

Quero encontrá-la nas próximas horas.

Ia revelando-se cada vez mais feroz.

d) nas locuções verbais, quando não estiver previsto o uso exclusivo da próclise, a ênclise recai sobre o verbo principal

Ia-me esquecendo dela. (G. Ramos)

Vão-me buscar assim que estiver pronto.

d) em início de período

Sentei-me calada e observei o tempo.


A flutuação na colocação pronominal não significa, entretanto, que antigas regras não tenham aplicabilidade. Elas são válidas e funcionam, não como regras, mas como registro de ocorrências mais usuais.

Ainda é importante destacar que alguns autores consideram que não se pode iniciar período ou oração com pronome átono. Assim, em períodos como

Se a simulação for absoluta, sem que tenha havido intenção de prejudicar terceiros, ou de violar disposição de lei, e for assim provado a requerimento de algum dos contratantes, – se julgará o ato inexistente,

se julgará”, por vir após vírgula, indicaria início de oração, o que, para alguns, significa equívoco de colocação. Modernamente, entretanto, mesmo os que se pautam pelo critério da oração, admitem a colocação do pronome átono antes do verbo em orações intercaladas. Sobre isso, a gramática de Celso Cunha destaca a preferência pela próclise, em especial no Brasil, em orações absolutas, principais e coordenadas, não iniciadas por palavra que exija ou aconselhe tal colocação (como palavras negativas, pronomes interrogativos, etc).

Essa liberdade de uso não significa abandono do redator à própria sorte. De forma alguma. Quanto mais nos apropriamos da língua mais os contornos locais se tornam claros e fortes. Não se trata de um aviltamento da língua original, mas de evolução natural e necessária, imposta pelos usuários, os entes soberanos dessa ferramenta.

O assunto não termina aqui, claro. Até a próxima!


Fontes básicas:
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.