sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Tempo fugidio


Eheu, fugaces labuntur anni (ai de nós! Como os anos passam depressa!) Horácio, Odes, II, 14, 1

A gramática não escapa ao tempo. Divide-o em passado, presente e futuro – além dos tempos derivados e secundários. Mas o tempo “é um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho”, que acata as variações dentro de seu curso. Para essas variações, os estudiosos apresentam o aspecto verbal, em busca das imprecisões do tempo.

O aspecto do verbo é a “representação mental que o sujeito falante faz do processo verbal como duração”, nos ensina Othon Garcia. Não se restringe ao tempo findado, ao agora ou ao porvir. Escorre pela linha da vida, passado do passado, mais-que-perfeito; o passado que poderia ter sido, futuro do pretérito; o momento correndo, em curso, gerundiando-se. A duração do tempo, quando nos atravessa, é o aspecto, que se amplia em curvas, idas e vindas. “Compositor de destinos”.

Os estudos do discurso já nos dizem que só o presente está entre nós. A enunciação é sempre agora. Portanto, o presente seria o único tempo possível. Mas a literatura narra no passado o vivido e compartilhado; a história nos ensina que o passado organiza o que nos ocorreu em outro tempo. O futuro. Ah! O futuro “a Deus pertence”. Nele não tocamos, como Moisés, o futuro é a visão da terra prometida. Às vezes o tempo é “apenas uma fotografia na parede/Mas como dói!”.

Então um dia o futuro chega, mas ele já não está mais lá, só resta o hoje. É carpe diem, adverte Horácio. Tudo que existe só está no presente.

Então, se gramático, histórico, poético, o tempo é o trem em que conduzimos nosso bem mais precioso: a vida. E o trem está em curso. Ainda há tempo. “O meu tempo é quando”, nos lembra o Poetinha (Vinícius de Moraes). E o quando é agora.

O ano foi bom. Afinal, estamos aqui.


Até a próxima! Que Kairos nos traga o tempo propício!


Fontes citadas:
Oração do tempo, de Caetano Veloso
GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 22ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
Confidência do Itabirano, de Carlos Drummond.
Poética, de Vinícius de Moraes.



sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Elidir ou Ilidir?

Há palavras na língua portuguesa que têm som (fonética), escrita (grafia) semelhantes, mas com significados muito diversos. É o caso de absorver/absolver; discriminar/descriminar; delatar/dilatar, entre tantas outras. Chamamos parônimas esses tipos de palavras.

As dificuldades que podem surgir no uso de palavras parônimas estão mais relacionadas ao equívoco gráfico. Como, por exemplo, usar retificar no lugar de ratificar, mandato no lugar de mandado. Nossa atenção, em casos assim, deve estar voltada para a grafia. Só isso. Uma vez resolvida a dúvida gráfica, nada quanto ao sentido restará.

No entanto, o par de parônimas elidir/ilidir pode gerar um pouco mais de incertezas.

Elidir tem o significado de eliminar, excluir, suprimir, fazer elisão; enquanto ilidir tem sentido de refutar, destruir, contestar, rebater. Inicialmente os sentidos se diferem muito, mas há momentos em que se aproximam tanto que temos dificuldade de distinguir o sentido. Vejo o exemplo a seguir.

O pagamento dos tributos, para efeito de extinção de punibilidade […], não elide a     pena de perdimento de bens autorizada pelo Decreto-Lei 1.455, de 1976, artigo 23. (TFR, Súmula n. 92)

Observe que o verbo elidir contém exatamente a ideia de exclusão. O pagamento daquele tributo não suprime/exclui a pena autorizada em determinada lei. Veja que a relação entre o verbo (elidir) e o complemento é objetiva.

Agora voltemos nosso olhar para um texto conhecido do judiciário trabalhista.

O só pagamento dos salários atrasados em audiência não ilide a mora capaz de determinar a rescisão do contrato de trabalho. (TST, Súmula n. 13)

Veja a ligeira diferença que há entre a primeira e a segunda súmula. Na Súmula do extinto Tribunal Federal de Recursos, o pagamento não suprime a pena. Já na do TST, a ideia é de que o pagamento de salários atrasados em audiência não é suficiente para refutar o argumento de mora. Se a Súmula fosse escrita com o verbo elidir, deveríamos ligá-lo diretamente à rescisão.

O só pagamento dos salários atrasados em audiência não elide a rescisão do contrato de trabalho.

Significaria dizer que o pagamento por si só não seria capaz de excluir a dispensa indireta. Mas não é esse o conteúdo da súmula. Atente-se para o fato de que a expressão mora vem acompanhada de um adjetivo: capaz. Isso significa que mora é o argumento capaz de determinar a rescisão do contrato, e esse argumento não pode ser contestado  com o pagamento dos salários. Há outros aspectos no atraso de salários que transcendem a mera relação devedor–credor. Conforme nos ensina o magistrado baiano Raymundo Antonio Carneiro Pinto, a Súmula n. 13 evita “que o empregador tente remediar seu erro num momento em que já não mais seria oportuno”.

Mas é claro que a diferença é muito sutil. É preciso decupar o texto para perceber que ilidir está ligado a mora (o argumento) e que a rescisão do contrato não está associada a ilidir. Se usássemos elidir, certamento não teríamos prejuízo na compreensão do texto. No final, tudo daria na mesma, não é? Talvez, em sentido prático, mas deixaríamos de perceber a precisão que o verbo ilidir confere ao texto nesse caso da Súmula n. 13. Ilidir sempre terá como referente um argumento. Esse é o pulo do gato.

Pensar na palavra com cuidado é um jeito de desembotar nosso olhar para os textos tão comuns em nosso cotidiano de escribas. Como diria Manoel de Barros, “palavras que me aceitam como sou – eu não aceito”.

Até a próxima!

Fontes básicas:
AZEVEDO, Francisco Ferreira dos Santos. Dicionário analógico da língua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4 ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.
HENRIQUES, Antonio & ANDRADE, Maria Margarida de. Dicionário de verbos jurídicos. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2010.
LUFT, Celso Pedro. Dicionário prático de regência verbal. 8 ed. São Paulo: Ática, 2002.
PINTO, Raymundo Antonio Carneiro. Súmulas do TST comentadas. 11 ed. São Paulo: Ltr, 2010.