segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Como os revisores pensam ou o novo livro de Elena Ferrante


Comecei a ler o mais novo livro de Ferrante, A vida mentirosa dos adultos. Primeiro é preciso esclarecer que, embora tenha encomendado ansiosamente esse livro, ao tê-lo em mãos, retardei o início da leitura o quanto pude, o tanto suficiente para não constranger quem deu-mo (ou mo deu, como escreveriam os lusitanos mais lusitanos que eu?). Deixei-o de lado mais de uma semana, até tentei outro livro, mas... as obrigações do espírito comandam até a vida dos incrédulos...

Como não ver em Vittoria a imagem e semelhança de Augusto (alguém que poderia estar nessa história, um pouco mais ao centro, pelas bandas de Roma). O travesseiro negado contra a corcunda prometida que não tive, mas que ainda me persegue depois do banho de lado para o espelho (deveria sempre olhar-me de frente). Quem sabe a corcunda não se atrasou? Quem sabe não aguarda por mim silenciosa, traiçoeira, vaticinal (acho que essa palavra não é vernacular, devo usar itálico?)?(duas interrogações não seria sinal de insegurança?) [agora não sei se a interrogação entre os parênteses está correta ou se ela deveria vir aqui, depois dos colchetes. Mas se não houvesse a dúvida não haveria colchetes, logo a interrogação principal está no lugar certo, o resto é perfumaria...]...  

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Junto a/em função de


Há expressões que, por serem tão eficientes significativamente, frequentam mais nossos textos do que deveriam. Algumas ampliam muito os sentidos originais e podem, não raro, comprometer a semântica do texto ou gerar interpretação diversa da desejada. “Junto a” e “em função de”, de tão conhecidas, podem se transformar em muletas textuais. É preciso estar atento tanto ao exagero no uso quanto ao sentido empregado. Vejamos:

Junto a
O sentido literal dessa expressão é “ao lado de”. Assim, temos: 

Guarde a gramática junto ao dicionário.

Além desse sentido, percebemos que a expressão pode ser empregada ao lado do verbo “interceder”. Observe:

Os alunos intercederam junto ao professor para o adiamento da prova. 

Atenção! Temos visto com muita frequência o uso “de junto a” em regências improváveis.
Vejamos:

Os servidores podem solicitar o registro de qualificação junto à secretaria competente.page1image2323224736page1image2323225024page1image2323225312page1image2323225600 page1image2323225888page1image2323226176
Para o verbo solicitar, basta a preposição “a”. Não há ali o sentido de “ao lado de” nem a expressão acompanha o verbo “interceder”. Então, o texto fica melhor sem “junto”.

Os servidores podem solicitar o registro de qualificação à secretaria competente.


Em função de

Essa é outra expressão muito corrente, usada, às vezes, em excesso e em papéis diversos do original. “Em função de” expressa relação de dependência, em frases como:

Aqueles homens viviam em função de seus pares.

A ideia de dependência presente na frase acima não se repete no seguinte exemplo:

A sessão foi cancelada em função da greve dos caminhoneiros.

Aqui o sentido é de “em razão de”. Nesses casos, recomenda-se o uso das expressões
“em razão de”, “em virtude de”, “por causa de”, que é o sentido proposto na frase. A sessão foi cancelada por causa da greve dos caminhoneiros.

Assim, simples e direta, a informação é transmitida de forma clara. Mas ser simples não é fácil, exige disciplina e pouca vaidade.

Até a próxima!

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Urdidura

Todos temos nossas preferências: políticas, times, seleções, cidades. Traços que nos
delineiam. Não parece incomum que também tenhamos nossas palavras queridas,
aquelas que criam imagens, adoçam o dia ou dão sentido aos sentimentos. As minhas
palavras queridas, percebi agora, fazem parte de um mesmo campo lexical. Começo com
urdidura, passo para tessitura e chego ao tecido.
Gosto também de uma expressão típica das Minas: “apertado de costura”. Eis um jeito
clássico e divertido de dizer que há muito trabalho para fazer. Nada daquela expressão
apressada: ocupadíssimo. Tem, ao contrário, a delicadeza do prestar um serviço, de estar
ocupado com o outro, de ter um compromisso. Lindo, não?
E quando a vida parece difícil, pensamentos “enviesados” brotam. Se nossas ideias estão
alinhadas (olha a linha aí), costuramos acordos e pensamentos.
Mas o que isso significa? Somos obcecados por costuras, moldes, tecidos? Acredito que
não. Talvez seja um traço cultural. Não somos tão antigos no mundo industrial. Temos
ainda mãe ou avó que operou uma velha máquina cujo sonzinho noturno ninou muitas
vidinhas. Ainda divisamos aquela velha máquina de costura ali no quarto de despejo.
Espólio de um tempo mais lento, que se foi, mas permaneceu na memória e,
consequentemente, na língua.
Outro campo que se espraia em nossa linguagem é o do futebol. “Damos bola fora” ao
dizer o que não se deve. “Pisamos na bola” com alguém que amamos. “Jogamos para
escanteio” o que não nos interessa. Sacamos um “cartão vermelho” para tudo que não é
bom e “fazemos um gol de placa”, quando agimos corretamente e de forma retumbante.
Essas expressões e palavras são expressivas porque retomam paixão e conhecimento
compartilhados.
Pode ser que em algumas décadas outros termos de outros esportes surjam. Talvez
aquela velha máquina se dissolva junto com suas palavras. Então, apenas documentos
históricos vão contar com qual lente enxergávamos a vida. Por isso escrever é uma
urdidura que se dá no hoje, tramada com fios do passado, tecendo o futuro.
Escrever é estar no presente, fugir das modas, mas perceber as novas palavras como
crianças bem-vindas iniciando a caminhada no mundo letrado.
Na vida de escriba (palavra charmosa mas de pouco uso) oficial, perceber as palavras,
acompanhar os usos e verificar se contêm suficiente conhecimento compartilhado é dever
diário.
Até a próxima!

terça-feira, 31 de março de 2020

Conversas sobre pronome indefinido


O pronome indefinido deve ser empregado nas situações discursivas em que a 3a pessoa gramatical (de quem se fala – ele, ela, eles e elas) é considerada de um modo vago ou indeterminado.
No cenário dos indefinidos, selecionamos dois deles: cada qualquer para a conversa de hoje. Bechara nos ensina que cada qualquer devem vir acompanhados de substantivo, pronome ou numeral cardinal. Dessa forma, temos:

As diferentes categorias tiveram aumento de 10% cada uma. (correto) *As diferentes categorias tiveram aumento de 10% cada. (errado) Aqueles homens executam qualquer trabalho. (correto)

O indefinido qualquer é por essência impreciso. O sentido que carrega está relacionado à ausência de particularização, em oposição a certo, pronome igualmente indefinido que tem valor particularizante. Já nenhum tem sentido negativo, que se opõe a algum, que tem sentido positivo.

Todos podem arranjar alguma coisa para fazer. 
Aqueles senhores não têm nenhuma vaidade.

Os pares certo/qualquer (particularizante e não particularizante) e algum/nenhum (positivo e negativo) têm natureza semântica diversa. No entanto, temos visto o uso corrente de qualquer na posição do indefinido nenhum, em orações como a seguinte:
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Ele não fez qualquer trabalho. (uso não recomendado)

Talvez para evitar duas negativas, esse emprego soe melhor aos redatores. É natural. Lembremo-nos, entretanto, de que qualquer com função negativa não é unanimidade entre gramáticos. Assim, como escribas oficiais, manter-se no padrão é necessário. Prefira, então:

Ele não fez nenhum trabalho. Ou, ainda,
Ele não fez trabalho algum.

A boa notícia para os que não gostam de duas negativas é que algum, na língua moderna, quando posposto a substantivo, tem força negativa maior que nenhum. Portanto, se o incômodo está no excesso de negação, opte por algum e tudo vai ficar positivamente bom.
Até a próxima!