sexta-feira, 22 de junho de 2018

Clichê

Eis uma época pródiga para toda natureza de clichês: Copa do Mundo. Pululam como formigas famintas. 

A seleção brasileira pode não ter demonstrado ainda a “atuação impecável” que a “voz rouca das ruas” tanto clama. Certo é que “do Oiapoque ao Chuí” todos torcem para que a canarinho conquiste o “caneco”. Esperamos, claro, uma “vitória esmagadora” que compense a falta do lugar-comum em certo jogo trágico. Mas, se sairmos da Rússia com as “mãos abanando”, pelo menos teremos pensado um pouco sobre os clichês: essas expressões sempre faiscantes que aparecem na superfície de nosso pensamento.

Não são condenáveis e cabem bem no discurso rápido do locutor, para o qual não damos muita atenção enquanto sofremos pelo gol que não se concretiza. Também, às vezes, é fonte de economia comunicativa, o entendimento é rápido, telegráfico. Mas aqui entre nós, escribas oficiais, todo cuidado é pouco.

Há variadas listas de clichês na web, nos livros de redação, mas, creia-me, todas incompletas, porque diariamente nascem novas expressões, algumas boas e muitas vazias de sentido, verborrágicas, ou de sentido desgastado. Pensar duas vezes antes de reproduzir no texto a primeira frase feita que lhe veio à mente é uma boa medida. Clichês são como músicas de verão, que grudam em nossa memória e logo nos vemos cantarolando-as despretensiosamente. 

“Pensar fora da caixa”, ver-se como um “ponto fora da curva”, achar que chegou “ao fundo do poço” pode funcionar bem na conversa informal e “conquistar corações e mentes”, mas nos textos oficiais denotam descuido. Mesmo que o clichê pareça formal e bem distante da linguagem coloquial da crônica esportiva, a falta de fluência verbal ainda estará presente. Pode ser que seu leitor o interprete como superficial tanto na escolha vocabular quanto no pensamento, o que é mais sério. 

Assim ficamos combinados (outro clichê): “respire aliviado”, deixe que no campo os jogos nos “tirem o fôlego” e que a seleção “faça por merecer”. Por aqui cumprimos o que “o professor mandou” e “fechamos com chave de ouro” criativa nossos textos.

Até a próxima!


sexta-feira, 18 de maio de 2018

Não só … mas também e a vírgula


Essa é uma expressão que se desdobra em outras com o mesmo sentido:

não apenas/só … mas também/ainda/senão
não só … como (também)

É corrente em nossos textos, no entanto parece gerar dúvida quanto ao uso ou não de vírgula. Não sem razão. Estamos acostumados a pensar na conjunção “mas” como adversativa. No caso das expressões enfáticas que listamos, a conjunção, dentro daquela estrutura maior, tem função aditiva.

Veja:

O reclamante alega que o Juízo de origem entendeu pela aplicação imediata da Lei 13.467/17 não em direito processual mas também em direito material do trabalho.

A condenação aqui imposta objetiva não apenas garantir à vítima um lenitivo proporcional à extensão do dano sofrido como também impor ao ofensor punição pedagógica capaz de coibir a reiteração da conduta ilícita.

Observe que ambos os exemplos expressam duas situações unidas, adicionadas uma a outra. Se quisermos, é possível substituir “não só… mas também” e assemelhados pela conjunção aditiva “e”.

O reclamante alega que o Juízo de origem entendeu pela aplicação imediata da Lei 13.467/17 em direito processual e em direito material do trabalho.

Por ser uma adição, a vírgula antes do “mas” é completamente desnecessária, mesmo que a construção nos pareça muito longa. Que jogue a primeira pedra quem jamais tascou uma vírgula apenas por causa do tamanho de uma sentença; ou quem, meramente por ver a conjunção “mas”, não lançou mão desse sinal gráfico. Lembre-se de que nem sempre “mas” é adversativa. Comvém olhar além das aparências.

É preciso, entretanto, ter cuidado para não cair em outra tentação. Há estruturas em que o advérbio de negação e a conjunção adversativa estão juntos, mas o sentido articulado é realmente adversativo: não isso, mas aquilo.

Observe:

O reclamante não apresentou provas, mas trouxe alegações pertinentes.
(não isso) (mas aquilo)


Nesse caso, “mas” liga duas orações que mantêm entre si a ideia de contraste, logo a vírgula é obrigatória.

Até a próxima!

sexta-feira, 11 de maio de 2018

“Minha Pátria é a Língua Portuguesa”*


Talvez você não saiba, mas semana passada o Porto F.C. sagrou-se campeão português de futebol. Assim como aqui, os adeptos de lá também gostam de tripudiar sobre o rival, como se vê nesse trecho de uma das inúmeras matérias sobre o feito.

Gonçalo Paciência e Sérgio Oliveira levaram um polvo de peluche para o relvado, numa clara alusão ao caso dos emails que envolve os encarnados. O avançado colocou o polvo no relvado, pegou na bandeirola de campo e "matou" o bicho, para gáudio dos adeptos presentes. 1

Ao ler o texto, certamente algumas palavras nos soam estranhas. Fosse a vitória de um time nacional, no mínimo, algumas expressões seriam trocadas: peluche/pelúcia; relvado/gramado; encarnados/vermelhos (ou rubros); avançado/atacante (ou ponta de lança); bandeirola de campo/bandeira de escanteio; gáudio/alegria; adeptos/torcedores.

Já ali em Moçambique ônibus é machimbombo; passeando por Angola um monandengue é uma criança.

Muito além de diversidades lexicais, há estudiosos que preveem um distanciamento ainda maior entre o português brasileiro e o europeu, a ponto de que um dia sejam línguas diferentes. Isso só o tempo dirá. “O mar da história é agitado”, já diria Maiakovski.

Por enquanto a comunidade lusófona caminha junto, mas no alforje cada país carrega suas peculiaridades. As influências de outros povos seguem deixando marcas. A história se consolida na vida linguageira das gentes.

Aqui no Brasil somos muitos falantes do português, mas não só. Na região amazônica há registro do censo de 2010 do IBGE de cerca de 274 dialetos e línguas, distribuídos por 205 etnias. Temos três localidades brasileiras com mais de um idioma oficial: 1) São Miguel da Cachoeira, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela, em que temos o português, o nheengatu, o tucano e o baníua; 2) Pomerode, em Santa Catarina, que além do português, tem o alemão; e 3) Tucuru, em Mato Grosso do Sul, onde o guarani também é língua oficial.

No nordeste de Portugal, fala-se o mirandês, língua oficial da região ao lado do português.

Pois bem, a multiplicidade linguística, no entanto, não provoca incomunicabilidade entre nós. Tropeçando aqui e ali, apurando o ouvindo e nos deliciando com nossas diferenças, somos capazes de nos entender. Uma lágrima de emoção brasileira pode cair ao ouvir um fado triste na voz de uma Mariza:

Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que a recebi

Ou uma adolescente de Moçambique talvez se veja nas frases de Arnaldo Antunes:

orientupis orientupis
ameriquítalos luso nipo caboclos
orientupis orientupis
iberibárbaros indo ciganagôs
somos o que somos
inclassificáveis
Tudo isso para dizer que em 5 de maio celebramos o Dia da Língua Portuguesa. Os participantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) guardaram a data para discutir sobre a nossa língua, para pensar não sobre o que nos diferencia, mas a respeito do que nos iguala, nos irmana. Celebremos, portanto, as idiossincrasias que nos fazem uma “frátria” de falantes do português, como diria Caetano Veloso:

A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria

Até a próxima!

Fontes básicas
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Rio de Janeiro: Companhia das Letras.
PROENÇA FILHO, Domicio. Muitas línguas, uma língua: a trajetória do português brasileiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.
* Frase de Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego.


quinta-feira, 10 de maio de 2018

Para pensar e agir



"Se deseja ser aceito como digno de crédito e inteligente, não use linguagem complicada onde uma linguagem simples daria conta do recado. Meu colega de Princeton, Danny Oppenheimer, refutou um mito predominante entre alunos acerca do vocabulário que os professores julgam mais impressionante. Em um artigo intitulado 'Consequências do vernáculo erudito utilizado a despeito da necessidade: problemas com o uso desnecessário de palavras longas', ele mostrou que expressar ideias familiares com linguagem pretensiosa é tomado como sinal de baixa inteligência e pouca credibilidade." 

("Rápido e devagar: Duas formas de pensar", Daniel Kahneman)

terça-feira, 8 de maio de 2018

Socioinstitucional - Sororidade



Palavras eu preciso
preciso com urgência.
(Titãs)
Socioinstitucional

Aqui estamos nós à roda do prefixo “socio”. Discutimos esse assunto no outras vezes. Naquele momento queríamos distinguir o substantivo “sócio” do prefixo socio-. A distinção nos permite entender que sócio-gerente é a combinação de dois substantivos que, ligados pelo hífen, criam uma nova palavra. Forma-se o que conhecemos como substantivo composto, cujo plural envolve os dois vocábulos (sócios-gerentes, sócios-fundadores).

Já socioeconômico é a junção de socio-, prefixo relacionado a social ou sociedade, e econômico, substantivo simples. Juntos formam uma concepção que associa sociedade e economia. Sempre sem acento no prefixo: sociocultural, sociojurídico, sociopolítica, etc. No caso desse prefixo, o hífen não é empregado, exceto quando o segundo termo inicia-se por o ou h, como em socio-histórico. Tudo isso está definido lá na Base XVI do Acordo Ortográfico.

Dito isso, temos socioinstitucional, palavra recente em nosso vocabulário, que, de acordo com o dicionário on-line Priberam, é um adjetivo relativo a instituições que trabalham para a melhora do bem-estar social. Ainda não consta em alguns de nossos dicionários nem é possível encontrá-la no Volp (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), mas está aí e responde às necessidades dos usuários da língua portuguesa.

Assim palavras nascem. Outras já nasceram, foram esquecidas e depois ressurgem em contextos bastante modernos.


Sororidade

Eis uma palavra de passado longo. Quem estudou em colégio de freiras conhece essa palavra. Soror (ou sóror) é uma forma de tratamento usual para freiras, no lugar de “irmã”. Já foi muito usada, mas, na contemporaneidade, andou sumida. Agora surge uma sua derivada – sororidade –, em um contexto muito moderno. A origem antiga agora remodela-se para se referir à união entre mulheres com o mesmo fim, geralmente de caráter feminista. Por extensão também atinge o mercado profissional. Diz-se de grupos femininos que funcionam em regime cooperativo de trabalho.

Nos dicionários físicos (E essa era uma explicação desnecessária há algum tempo!) ainda não encontramos o termo, apenas outros derivados, como sororicídio, sororato. No Priberam on-line já podemos encontrar o verbete.

Interessante observar como a língua de um povo é viva, pulsante, avança com os falantes. Temos um baú cheio de palavras, vez por outra uma ressurge para novas tarefas, enquanto outras são ali guardadas. Mas todas nos pertencem, mesmo as que nem imaginamos ainda.


Até a próxima!

sexta-feira, 4 de maio de 2018

BH em palavras


Moto: substantivo ou elemento de composição?


Experimente fazer uma pesquisa rápida da palavra “moto-entregador” em acórdãos. Acrescente à investigação “motoentregador”. Acredite, você encontrá os dois registros, igualmente utilizados.

Aqui não vai nenhuma crítica aos dedicados escribas. A dúvida quanto ao uso do vocábulo “moto” é mais que natural. Esperada até.

Para resolver o problema, comecemos por distinguir “moto 1”, substantivo masculino, e “moto 2”, elemento de composição.

Moto 1

Trata-se de um substantivo que significa “movimento, giro”. Nossa ortografia prescreve o emprego do hífen nos compostos (aqueles que em conjunto formam uma nova palavra) por justaposição sem termo de ligação, se o 1º elemento, por extenso ou reduzido, for um substantivo, adjetivo, numeral ou verbo. Assim, temos:

ano-luz mato-grossense primeiro-ministro guarda-chuva moto-contínuo

Nesse cenário, “moto”, que é um substantivo, une-se, por exemplo, a “contínuo” para formar
uma terceira palavra: “moto-contínuo”.

Moto 2

Aqui “moto” é um elemento de composição (prefixo), com sentido de “motor”. O funcionamento desse prefixo obedece aos mesmos parâmetros de retro-, supra-, contra-, ultra-, entre outros: não se utiliza hífen se o segundo elemento começa por vogal diferente, “r” ou “s”, que devem ser duplicados, ou por outras consoantes. Vejamos:

retroalimentação motoentregador supraocular contrarrazões ultrassonografia

Observe que em “motoboy”, “mototáxi” e “motoentregador”, “moto” é a redução de “motocicleta”. Já em “motopropulsor”, “motosserra”, “motoniveladora”, temos “moto” como prefixo, que remete a “motor”.

Além desses papéis, “moto” também é variante de “mote”, termo de origem francesa, cuja semântica corrente aponta para “tema, assunto”. Também temos “moto” que integra a expressão “moto próprio”, que significa de forma espontânea.


Até a próxima!

Fontes básicas:
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
_______________A nova ortografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
FERREIRA, Aurélio B. H. Novo dicionário Aurélio de língua portuguesa. 4 ed. Curitiba: Positivo, 2009
HOUAISS, Antônio. Novo dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

Estrangeirismos



Ao abrir os jornais, mais que notícias, surgem palavras e expressões novas. Algumas, como fake news, se replicam em todos os lugares. Por aqui, temos hard cases para enfrentar e truck system para inibir. Não bastassem os textos, os filhos são geeks, o mobiliário não é cleam emessage para responder. Mas o que aconteceu? Será uma invasão da fronteira linguística e da identidade nacional?

Não é bem assim. Já faz muito tempo que nossa língua tem impressa em si os contatos que ocorreram ao longo dos séculos com outros povos. Quando ainda éramos Pindorama, a flor do Lácio já carregava no alforje palavras como alarido, alfândega, toldo, alecrim, laranja, limão, açúcar, xarope, absorvidas na longa ocupação árabe da Península Ibérica.

Do contato mais próximo de Portugal com Espanha, herdamos, entre muitas outras: bolero, fandango, muleta. Da Itália absorvemos bravo, fiasco, arlequim, girândola, concurso, balcão, fachada. O francês, junto com a moda, nos trouxe também ateliê (atelier), bibelô (bibelot), chique (chic), culinária e tantas outras palavras doces e belas.

No pós-guerra, o inglês toma a dianteira e passa a ser uma das línguas mais difundidas no mundo. Os conhecimentos científicos, a força do comércio, dos meios de comunicação capitaneados pelos estadunidenses reforçaram a influência linguística do idioma.

Casteleiro indica que “a língua falada por um povo é um organismo vivo, enriquecendo-se quotidianamente no contato dos seus falantes com novas realidades e até com outros idiomas”. Os efeitos do contato na fala podem migrar também para a escrita. Outras vezes, a palavra não chega pela fala, aproxima-se por meio de uma tecnologia, de uma área de conhecimento ou de um processo histórico. Vejamos truck system e fake news. A primeira expressão não tem tradução direta, está associada a uma prática inglesa; a segunda, bem mais recente, vem tomando força desde o 2017, em virtude de certo cenário político internacional.

Hard case já se consolidou no ramo do jurídico. A mera tradução para “casos difíceis” poderia dar a ideia de que tudo o mais que não se enquadra nos hard cases é fatalmente “caso fácil”, o que, claro, não é verdade. Nem todos “casos difíceis” são hard cases. Por essa razão, mantemos o termo original, porque se constitui como um conceito que ultrapassa a noção de dificuldade, pois envolve questões morais, doxas. Filosófico demais para ser apenas um “caso difícil”.

fake news, por ser uma expressão mais nova, ainda está em processo de delimitação semântica. Pode ser uma notícia falsa ou apenas uma notícia contrária aos interesses de quem a lê; pode ser também algo que parece verdade, tem lastro na realidade, mas se confirma falso. Talvez essa expressão não dure até o próximo Verão. Quem saberá? Palavras estrangeiras transitam pela língua, algumas ficam, outras não passam de modismo.

É importante ter em mente que a língua, orgânica, viva, não se descaracteriza por essas assimilações. As novas palavras enriquecem o idioma, somam, não subtraem.

Atenção! Entender que novas palavras podem e devem ser acrescidas ao nosso idioma não significa produzir textos inacessíveis. Na redação oficial, as palavras estrangeiras devem conter a devida tradução ou conceituação, entre parênteses. O leitor não é obrigado a conhecer tais palavras. Outra atitude importante é não usar termos estrangeiros quando há similares no vernáculo. Usar palavras conhecidas é sempre a melhor opção. E isso vale para os termos latinos também.


Até a próxima!


Fontes básicas

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
CASTELEIRO, M. Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Verbo, 2001.
TEIXEIRA, Madalena Teles de Vasconcelos Dias. Os estrangeirismos no léxico português: uma perspectiva diacrónica. Filologia e Linguística Portuguesa, Brasil, n. 10-11, p. 81-100, june 2009. ISSN 2176-9419. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/flp/article/view/59816/62925>. Acesso em: 13 apr. 2018. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2176-9419.v0i10-11p81-100.

Infinitivo e a preposição “para”



Por aqui já falamos sobre o emprego do infinitivo pessoal e impessoal algumas vezes. Ainda assim, dúvidas nos chegam, sempre pertinentes. Não sem razão.

Há fenômenos da língua que são naturais, encontramos solução sem esforço. Outros são menos naturais, apreendemos pelo letramento. Temos, portanto, um conjunto de regras, gramáticas internas ou escolares, que nos conduzem. No caso do infinitivo, as regras são fluidas, dissonantes entre gramáticos e isso nos deixa a todos inseguros. Escreveremos sobre o tema e sempre vai aparecer um aspecto novo ou não abordado. Por essa razão, hoje vamos responder a uma dúvida que nos foi apresentada, com lastro na vida real. O texto foi alterado, claro, mas é basicamente o seguinte:

O Excelentíssimo Juiz Diretor do Foro Trabalhista de Algunlugar indica as servidoras Fulana e Sicrana para atuar (ou atuarem) como Oficial de Justiça ad hoc”. (com alterações)
A dúvida relaciona-se à flexão ou não do verbo “atuar”. Devemos fazer a concordância com “Fulana e Sicrana” ou basta que permaneça no infinitivo?

De acordo com Said Ali, se não se trata de uma locução verbal, “a escolha da forma infinitiva depende de cogitarmos somente da ação ou do intuito ou necessidade de pormos em evidência o agente do verbo”.

No exemplo, temos um primeiro agente (ou agente principal) que é o Diretor do Foro. É ele quem pratica uma ação que vai gerar como desdobramento outra ação. Também parece fácil perceber que serão as “servidoras Fulana e Sicrana” que atuarão como Oficial ad hoc. Esses fatos do texto estão claros, ainda com verbo no infinitivo impessoal. Não há ambiguidade a ser sanada. Para esses casos, sem ambiguidade ou prejuízo da clareza, a forma impessoal é suficiente. Eis um fato.

Se por acaso o redator usar o infinito pessoal (atuarem), não teremos um erro. Muitos gramáticos, aí incluído Bechara, que é um autor de prestígio, abonam a forma pessoalizada para esse caso.

Então vamos ao pulo do gato. Se não há ambiguidade, se o texto está claro, o infinitivo sempre vai funcionar e não vai gerar dúvidas. Nesse mar de discordâncias, a forma impessoal traz mais conforto e paz. Além disso, como já nos ensinou Paul Valéry, “entre duas palavras, escolha sempre a mais simples”. No nosso caso, “atuar” é o mais simples.
Até a próxima!


Fontes Básicas:
ALI, M. Said. Gramática Secundária da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos.
ALMEIDA, Napoleão Mendes de Almeida. Dicionário de questões vernáculas. 4ª ed. São Paulo: Ática, 2005.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.


segunda-feira, 9 de abril de 2018

Queísmo


Queísmo é o nome que damos ao uso indiscriminado do pronome relativo que. Observe que essa partícula é importante na construção de textos coerentes e coesos. Cabe em quase todo lugar quando precisamos fazer referência a um termo anterior. Talvez por isso, em nosso ofício de redatores, muitas vezes usamos o que em excesso. Surgem daí textos enfadonhos e pouco criativos. Por isso é tão importante ler e reler o texto produzido, sentir o ritmo de cada palavra, convencer-se da artesania. A arte está em retirar as rebarbas e deixar o texto mais fluido.

Vamos a algumas sugestões para tentar resolver o problema:


1. Substitua a oração que caracteriza o termo anterior (oração adjetiva) por substantivos seguidos por complementos:

Sergio Rodrigues, que escreveu O Drible, foi homenageado naquela noite.
Sergio Rodrigues, autor de O Drible, foi homenageado naquela noite.

2. Substitua por adjetivos:

Este é um comportamento que não é compatível com o cargo ocupado.
Este é um comportamento incompatível com o cargo ocupado.

3. Substituta a oração desenvolvida por reduzida de gerúndio:

Apresentou defesa que sustenta a incompetência do órgão julgador.
Apresentou defesa sustentando a incompetência do órgão julgador.

4. Substitua oração desenvolvida por reduzida de particípio:

Tomaram conhecimento da decisão que foi publicada no Diário Oficial.
Tomaram conhecimento da decisão publicada no Diário Oficial.

5. Experimente reescrever o texto:

A agravante defende que a incidência de juros e multa ocorre apenas no momento em que o devedor deixa de pagar o crédito tributário lançado e definitivamente constituído, ou seja, no dia dois do mês seguinte ao da liquidação da sentença.

A agravante defende a incidência de juros e multa apenas no momento em que o devedor deixa de pagar o crédito tributário lançado e definitivamente constituído, ou seja, no dia dois do mês seguinte ao da liquidação da sentença.


Atenção! Alguns redatores apenas substituem o que pelas formas variáveis o qual, os quais, a qual, as quais. O problema não se resolve assim. Ao contrário, o texto se torna ainda mais cansativo. Esse recurso deve ser utilizado para eliminar ambiguidade.

Visitei o sítio de minha amiga que me deixou pasmado. (ambíguo, pois o que pode se referir ao sítio ou à amiga)

Visitei o sítio de minha amiga o qual me deixou pasmado. (o sítio)
Visitei o sítio de minha amiga a qual me deixou pasmado. (a amiga)

Até a próxima!

sexta-feira, 16 de março de 2018

Estória x História




As palavras têm história. Algumas têm vida-longa. Outras são engolidas por buracos negros, e quase não deixam rastro. Há aquelas que aparecem raramente, vão sendo esquecidas ao longo do tempo, envelhecem. Os motivos pelas quais as palavras surgem e somem são variados. Difícil definir um. Mais fácil entender a antimatéria.

A dupla estória/história é um desses casos de nascimento, aparente morte, ressurreição, esquecimento e dúvida. Então vamos ao caso. “Esta é a estória.”1

A palavra “história” vem do grego e chega ao português pelo latim. A forma “estória” tem a mesma origem, entretanto chega ao nosso idioma através do inglês story. Mas não se trata de anglicismo de tempos tecnológicos, como, por exemplo, “deletar”. Essa “estória” é antiga, as primeiras ocorrências se deram no século 13, enquanto “história” apareceu apenas no século 142. Não é como “deletar”, também de origem latina, que chega pelo inglês ao Brasil junto com a tecnologia que inventou esse modo de apagar, remover, retirar arquivos de computador.

Observe que “deletar” não se opõe a nenhuma palavra com sentido próximo, como apagar. Pode-se usar uma ou outra. Já “estória” se opõe a “história”, uma vez que carrega significado diverso. “Estória” é tradicionalmente utilizada para definir narrativas de cunho popular e tradicional, enquanto “história”, em oposição, pode se referir à disciplina, área de conhecimento, descrição de fatos notáveis, etc.

Acontece que essa distinção não é mais unânime. O dicionário Aurélio, por exemplo, recomenda, no verbete “estória”, “apenas a grafia história, tanto no sentido de ciência histórica, quanto no de narrativa de ficção, conto popular, e demais acepções.”3

Poderíamos afirmar, então, que “estória” morreu? Vamos devagar. As palavras de fato não morrem, calam-se. “Estória” existe, está lá no dicionário, está em Guimarães Rosa, em títulos de livros como “Primeiras estórias”, e na célebre frase do autor, no prefácio a Tutameia: “A estória não quer ser história.”4

Mas, como dito antes, as palavras têm história. Como assegurar que os fatos narrados em livros de História correspondem à realidade? Como afirmar que um conto não encerra um fato? Com distinguir, em tempos líquidos, o real do irreal? Talvez, e aí está apenas uma suposição desse redator, o vocábulo “história” seja mais abrangente e não comprometa a realidade ou irrealidade das narrativas, oficiais ou não. Assim, hoje em dia, aquela velha distinção já não vale. Temos, portanto, “histórias infantis” e “História da República”, tanto faz.

Para nós, escribas de textos oficiais, que não podemos nos dar ao luxo de usar ironias e estilo, permanece apenas “história”, tanto para a Carochinha quanto para qualquer outro relato, mesmo que, em alguns casos, até desejássemos que tudo não passasse de “estória”.

Até a próxima!

Fontes básicas:
1 ROSA, Guimarães. As margens da alegria, em Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, xxxx
2 HOUAISS, Antônio. Novo dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
3 FERREIRA, Aurélio B. H. Novo dicionário Aurélio de língua portuguesa. 4 ed. Curitiba: Positivo, 2009.
4 ROSA, Guimarães. Tutaméia. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

Luto e antiluto






Parece que o luto é o período que uma pessoa leva para superar uma perda. Mas eu não sei qual é a palavra para quando não se quer superar a perda. Há perdas insuperáveis que, somadas, não admitem o luto. Tenho um grito na garganta.

Então, hoje estou no antiluto, na permanência, contra o esquecimento ou a superação. Minha alma estremece permanentemente triste pela febre amarela, pela dengue de todo verão, pelas crianças mortas prematuramente, pela violência que não deveriam presenciar, pelas multidão de jovens negros que morrem por arma de fogo, por políticos indecentes e fomentadores da intolerância, pela colega de trabalho que acredita que os gays estão tendo voz demais, pelo pensamento retrógrado crescente, pelas meninas, pelos meninos... permanentemente triste por Marielle e Anderson, por quem esteve no mundo para dar aqueles e outros tantos tiros...

Não descansaremos em paz!

quinta-feira, 1 de março de 2018

Aspas e Ponto


Já escrevemos aqui sobre o uso das aspas. Ainda assim temos percebido que uma dúvida permanece: aspas e ponto final.

Vamos relembrar. Se a citação de um texto inclui o ponto final, ou seja, se é importante indicar para o leitor que o texto se encerra naquele ponto, disponha as aspas depois do ponto (.”).


Em relação ao Recurso de Revista, a CLT determina, no art. 896: “§ 7º A divergência apta a ensejar o recurso de revista deve ser atual, não se considerando como tal a ultrapassada por súmula do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal, ou superada por iterativa e notória jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho.”


Veja que no trecho citado o ponto final faz parte do texto original, que coincide com o final do período como um todo. O redator considerou importante indicar que o trecho da norma mencionada termina naquele ponto. Nesse caso, o ponto da citação vale como ponto final, sempre posicionado antes das aspas.

Observe esse outro exemplo:

Fernando Pessoa nos ensina que “tudo vale a pena”.

Sabemos que o poema de Pessoa não para ali, há lago mais que pode mudar o sentido do que afirma o redator. Na verdade, Pessoa diz que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. O “se”, condicional, muda tudo. Ao posicionar o ponto final depois das aspas, mostramos ao leitor esse dado. Portanto, aspas bem posicionadas mostram a honestidade intelectual do escriba.

Veja que as marcas gráficas de um texto são essenciais, sinalizam ao leitor informações não textuais muito importantes e indicam caminhos. Os sinais não são meros detalhes inventados por desocupados ou chatices acadêmicas, são como placas numa estrada, conferem ao texto clareza e coerência, e preenchem a falta da interação face a face.

Até a próxima!


Fonte básica

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520: apresentação de citações em documentos. Rio de Janeiro: ABNT, 2002.


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Abreviaturas: Ltda., S.A. e etc.

Ah! As abreviaturas! Mão na roda, mas, às vezes, nos deixam com dúvida. Ser breve não é fácil. Então, vamos ao luxo da simplicidade, da precisão e da rapidez.

Ltda. e S.A.

A abreviatura de Limitada é Ltda. Observe que o ponto é parte da abreviação. Assim, se a Ltda. aparece no meio de uma oração, o ponto abreviativo deve estar presente. Veja o exemplo.


A empresa Honestidade Ltda., após várias tentativas, foi finalmente notificada.

Sociedade Anônima é abreviada com ponto: S.A. Além dessa forma, pode ser representada por S/A. Atenção apenas ao fato de que, se usamos a barra, os pontos somem. Observe os exemplos seguintes:

A Honestidade Ltda. e a Displicência S.A. estavam representadas na reunião.

Displicência S.A., reestruturada, agora conta com outro time na administração.

Atenção! Veja que, mesmo diante de uma vírgula, o ponto abreviativo se mantém. Se coincide com o final da oração, usamos apenas um ponto que serve como abreviativo e final. Nunca o duplicamos. Isso vale para qualquer abreviação.


Os sócios devem comparecer à audiência de instrução relativa à empresa Honestidade Ltda.
Há muitos interessados na Ativos S.A.

Etc.

Como as demais abreviaturas, etc. existe com ponto. Após etc., pode-se usar qualquer pontuação (exclamação, interrogação, vírgula, ponto e vírgula).

Você quer dizer que comprou um carro, uma casa, um iate etc.?

Fique atento! A regra de não duplicar ponto, vale também para etc.

Há ainda mais algumas regras para usar etc. (et cetera):

1. Et cetera (etc.) significa “e outras coisas”. Isso quer dizer que o conectivo “e” já está presente na expressão, por essa razão não precisamos acrescentá-lo.


Compramos muitos objetos naquela loja: quadros, porta-retratos, jarros etc.

Observe que no título dessa coluna (Ltda., S.A. e etc.), o etc. aparece acompanhado por um conectivo. Ali, entretanto, etc. é parte de uma sequência como um termo, ao lado de Ltda. e S.A.

Alguns redatores e estudiosos admitem o uso de vírgula antes do etc. Originalmente não há vírgula, porque já está presente o conectivo “e”. Modernamente já se considera facultativo, mas não é pensamento unânime entre gramáticos.

2. Não devemos usar etc. em referências a pessoas. Deixemos a expressão para seres inanimados. Ninguém quer estar incluído no etc.

3. Não se usa reticências com etc. Essa abreviatura por si só já indica que existem outras coisas que não foram listadas.


Até a próxima!


Fontes básicas:

LUFT, Celso. Grande Manual de Ortografia. 3 ed. São Paulo: globo, 2012.

Academia Brasileira de Letras (ABL). Reduções. http://www.academia.org.br/nossa-lingua/reducoes (acesso em 21/2/2018).