As
palavras têm história. Algumas têm vida-longa. Outras são
engolidas por buracos negros, e quase não deixam rastro. Há aquelas
que aparecem raramente, vão sendo esquecidas ao longo do tempo,
envelhecem. Os motivos pelas quais as palavras surgem e somem são
variados. Difícil definir um. Mais fácil entender a antimatéria.
A
dupla estória/história é um desses casos de nascimento, aparente
morte, ressurreição, esquecimento e dúvida. Então vamos ao caso.
“Esta é a estória.”1
A
palavra “história” vem do grego e chega ao português pelo
latim. A forma “estória” tem a mesma origem, entretanto chega ao
nosso idioma através do inglês story. Mas não se trata de
anglicismo de tempos tecnológicos, como, por exemplo, “deletar”.
Essa “estória” é antiga, as primeiras ocorrências se deram no
século 13, enquanto “história” apareceu apenas no século 142.
Não é como “deletar”, também de origem latina, que chega pelo
inglês ao Brasil junto com a tecnologia que inventou esse modo de
apagar, remover, retirar arquivos de computador.
Observe
que “deletar” não se opõe a nenhuma palavra com sentido
próximo, como apagar. Pode-se usar uma ou outra. Já “estória”
se opõe a “história”, uma vez que carrega significado diverso.
“Estória” é tradicionalmente utilizada para definir narrativas
de cunho popular e tradicional, enquanto “história”, em
oposição, pode se referir à disciplina, área de conhecimento,
descrição de fatos notáveis, etc.
Acontece
que essa distinção não é mais unânime. O dicionário Aurélio,
por exemplo, recomenda, no verbete “estória”, “apenas a grafia
história, tanto no sentido de ciência histórica, quanto no de
narrativa de ficção, conto popular, e demais acepções.”3
Poderíamos
afirmar, então, que “estória” morreu? Vamos devagar. As
palavras de fato não morrem, calam-se. “Estória” existe, está
lá no dicionário, está em Guimarães Rosa, em títulos de livros
como “Primeiras estórias”, e na célebre frase do autor, no
prefácio a Tutameia: “A estória não quer ser história.”4
Mas,
como dito antes, as palavras têm história. Como assegurar que os
fatos narrados em livros de História correspondem à realidade? Como
afirmar que um conto não encerra um fato? Com distinguir, em tempos
líquidos, o real do irreal? Talvez, e aí está apenas uma suposição
desse redator, o vocábulo “história” seja mais abrangente e não
comprometa a realidade ou irrealidade das narrativas, oficiais ou
não. Assim, hoje em dia, aquela velha distinção já não vale.
Temos, portanto, “histórias infantis” e “História da
República”, tanto faz.
Para
nós, escribas de textos oficiais, que não podemos nos dar ao luxo
de usar ironias e estilo, permanece apenas “história”, tanto
para a Carochinha quanto para qualquer outro relato, mesmo que, em
alguns casos, até desejássemos que tudo não passasse de “estória”.
Até
a próxima!
Fontes
básicas:
1
ROSA, Guimarães. As margens da alegria, em Primeiras estórias. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, xxxx
2
HOUAISS, Antônio. Novo dicionário Houaiss da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
3
FERREIRA, Aurélio B. H. Novo dicionário Aurélio de língua
portuguesa. 4 ed. Curitiba: Positivo, 2009.
4
ROSA, Guimarães. Tutaméia. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.