sexta-feira, 16 de março de 2018

Estória x História




As palavras têm história. Algumas têm vida-longa. Outras são engolidas por buracos negros, e quase não deixam rastro. Há aquelas que aparecem raramente, vão sendo esquecidas ao longo do tempo, envelhecem. Os motivos pelas quais as palavras surgem e somem são variados. Difícil definir um. Mais fácil entender a antimatéria.

A dupla estória/história é um desses casos de nascimento, aparente morte, ressurreição, esquecimento e dúvida. Então vamos ao caso. “Esta é a estória.”1

A palavra “história” vem do grego e chega ao português pelo latim. A forma “estória” tem a mesma origem, entretanto chega ao nosso idioma através do inglês story. Mas não se trata de anglicismo de tempos tecnológicos, como, por exemplo, “deletar”. Essa “estória” é antiga, as primeiras ocorrências se deram no século 13, enquanto “história” apareceu apenas no século 142. Não é como “deletar”, também de origem latina, que chega pelo inglês ao Brasil junto com a tecnologia que inventou esse modo de apagar, remover, retirar arquivos de computador.

Observe que “deletar” não se opõe a nenhuma palavra com sentido próximo, como apagar. Pode-se usar uma ou outra. Já “estória” se opõe a “história”, uma vez que carrega significado diverso. “Estória” é tradicionalmente utilizada para definir narrativas de cunho popular e tradicional, enquanto “história”, em oposição, pode se referir à disciplina, área de conhecimento, descrição de fatos notáveis, etc.

Acontece que essa distinção não é mais unânime. O dicionário Aurélio, por exemplo, recomenda, no verbete “estória”, “apenas a grafia história, tanto no sentido de ciência histórica, quanto no de narrativa de ficção, conto popular, e demais acepções.”3

Poderíamos afirmar, então, que “estória” morreu? Vamos devagar. As palavras de fato não morrem, calam-se. “Estória” existe, está lá no dicionário, está em Guimarães Rosa, em títulos de livros como “Primeiras estórias”, e na célebre frase do autor, no prefácio a Tutameia: “A estória não quer ser história.”4

Mas, como dito antes, as palavras têm história. Como assegurar que os fatos narrados em livros de História correspondem à realidade? Como afirmar que um conto não encerra um fato? Com distinguir, em tempos líquidos, o real do irreal? Talvez, e aí está apenas uma suposição desse redator, o vocábulo “história” seja mais abrangente e não comprometa a realidade ou irrealidade das narrativas, oficiais ou não. Assim, hoje em dia, aquela velha distinção já não vale. Temos, portanto, “histórias infantis” e “História da República”, tanto faz.

Para nós, escribas de textos oficiais, que não podemos nos dar ao luxo de usar ironias e estilo, permanece apenas “história”, tanto para a Carochinha quanto para qualquer outro relato, mesmo que, em alguns casos, até desejássemos que tudo não passasse de “estória”.

Até a próxima!

Fontes básicas:
1 ROSA, Guimarães. As margens da alegria, em Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, xxxx
2 HOUAISS, Antônio. Novo dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
3 FERREIRA, Aurélio B. H. Novo dicionário Aurélio de língua portuguesa. 4 ed. Curitiba: Positivo, 2009.
4 ROSA, Guimarães. Tutaméia. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

Luto e antiluto






Parece que o luto é o período que uma pessoa leva para superar uma perda. Mas eu não sei qual é a palavra para quando não se quer superar a perda. Há perdas insuperáveis que, somadas, não admitem o luto. Tenho um grito na garganta.

Então, hoje estou no antiluto, na permanência, contra o esquecimento ou a superação. Minha alma estremece permanentemente triste pela febre amarela, pela dengue de todo verão, pelas crianças mortas prematuramente, pela violência que não deveriam presenciar, pelas multidão de jovens negros que morrem por arma de fogo, por políticos indecentes e fomentadores da intolerância, pela colega de trabalho que acredita que os gays estão tendo voz demais, pelo pensamento retrógrado crescente, pelas meninas, pelos meninos... permanentemente triste por Marielle e Anderson, por quem esteve no mundo para dar aqueles e outros tantos tiros...

Não descansaremos em paz!

quinta-feira, 1 de março de 2018

Aspas e Ponto


Já escrevemos aqui sobre o uso das aspas. Ainda assim temos percebido que uma dúvida permanece: aspas e ponto final.

Vamos relembrar. Se a citação de um texto inclui o ponto final, ou seja, se é importante indicar para o leitor que o texto se encerra naquele ponto, disponha as aspas depois do ponto (.”).


Em relação ao Recurso de Revista, a CLT determina, no art. 896: “§ 7º A divergência apta a ensejar o recurso de revista deve ser atual, não se considerando como tal a ultrapassada por súmula do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal, ou superada por iterativa e notória jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho.”


Veja que no trecho citado o ponto final faz parte do texto original, que coincide com o final do período como um todo. O redator considerou importante indicar que o trecho da norma mencionada termina naquele ponto. Nesse caso, o ponto da citação vale como ponto final, sempre posicionado antes das aspas.

Observe esse outro exemplo:

Fernando Pessoa nos ensina que “tudo vale a pena”.

Sabemos que o poema de Pessoa não para ali, há lago mais que pode mudar o sentido do que afirma o redator. Na verdade, Pessoa diz que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. O “se”, condicional, muda tudo. Ao posicionar o ponto final depois das aspas, mostramos ao leitor esse dado. Portanto, aspas bem posicionadas mostram a honestidade intelectual do escriba.

Veja que as marcas gráficas de um texto são essenciais, sinalizam ao leitor informações não textuais muito importantes e indicam caminhos. Os sinais não são meros detalhes inventados por desocupados ou chatices acadêmicas, são como placas numa estrada, conferem ao texto clareza e coerência, e preenchem a falta da interação face a face.

Até a próxima!


Fonte básica

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520: apresentação de citações em documentos. Rio de Janeiro: ABNT, 2002.