Sempre
ouvimos falar que o nosso idioma é preferencialmente enclítico, ao
contrário do espanhol, por exemplo, para o qual se indica como
padrão a próclise: “me gusta”, “me encanta”.
Assim,
em português, devemos posicionar o pronome depois do verbo.
Consideram-se, segundo esse pensamento, equivocadas expressões como:
Me empresta esse livro? / Me
liga amanhã.
Ora, a língua é plástica. As escolhas tanto vocabulares quanto sintáticas se pautam por situações, meios, plataformas, formalidade ou informalidade. Então, entre o cotidiano “me empresta” e os usos nos textos atuais é possível perceber mudanças ou flexibilização da colocação pronominal.
Mesmo
as gramáticas canônicas lançam um olhar mais amplo sobre o tema.
Evanildo Bechara, por exemplo, na Moderna Gramática Portuguesa,
aponta que
durante
muito tempo viu-se o problema apenas pelo aspecto sintático,
criando-se a falsa teoria da 'atração' vocabular do não, do
quê, de certas conjunções e tantos outros vocábulos.
Graças a notáveis pesquisadores (...) passou-se a considerar o
assunto pelo aspecto fonético-sintático.
O
autor quer deixar claro que não se trata de mera atração. O que
nos obriga a colocar o pronome antes do verbo (próclise) é a
eufonia, não uma regra pura e simples. Observem as orações abaixo:
Ele não me contou nada. / Ele não
contou-me nada.*
Ambas
estão claras, mas a primeira nasce mais naturalmente. Então, o
usuário determina a regra, não o contrário. É ele quem percebe o
idioma.
Das
gramáticas mais conhecidas extraímos sugestões para uso da ênclise
que
levam em consideração aspectos sintáticos, portanto mais fixos:
a)
se o pronome for objeto do verbo
Mesmo com todas as dificuldades,
deram-lhe o que era necessário.
b)
quando o pronome tem a forma “o” ou “a” e o infinitivo vem
regido da preposição “a”
Se soubesse, não continuaria a
lê-lo. (R. Barbosa)
Começaram a imitá-la.
c)
nas locuções verbais em que o verbo principal está no infinitivo
ou gerúndio
O candidato veio interromper-me.
Quero encontrá-la nas
próximas horas.
Ia revelando-se cada vez
mais feroz.
d)
nas locuções verbais, quando não estiver previsto o uso exclusivo
da próclise, a ênclise recai sobre o verbo principal
Ia-me esquecendo dela. (G.
Ramos)
Vão-me buscar assim que
estiver pronto.
d)
em início de período
Sentei-me calada e observei
o tempo.
A
flutuação na colocação pronominal não significa, entretanto, que
antigas regras não tenham aplicabilidade. Elas são válidas e
funcionam, não como regras, mas como registro de ocorrências mais
usuais.
Ainda
é importante destacar que alguns autores consideram que não se pode
iniciar período ou oração com pronome átono. Assim, em períodos
como
Se
a simulação for absoluta, sem que tenha havido intenção de
prejudicar terceiros, ou de violar disposição de lei, e for assim
provado a requerimento de algum dos contratantes, – se
julgará o ato inexistente,
“se
julgará”, por vir após vírgula, indicaria
início de oração, o que, para alguns, significa equívoco de
colocação. Modernamente,
entretanto,
mesmo
os que se pautam pelo critério da oração, admitem a colocação do
pronome átono
antes do verbo em orações intercaladas. Sobre
isso, a gramática de Celso Cunha
destaca
a preferência pela próclise, em especial no Brasil, em orações
absolutas, principais e coordenadas, não iniciadas por palavra que
exija ou aconselhe tal colocação (como palavras negativas, pronomes
interrogativos, etc).
Essa
liberdade de uso não significa abandono do redator à própria
sorte. De forma alguma. Quanto mais nos apropriamos da língua mais
os contornos locais se tornam claros e fortes. Não se trata de um
aviltamento da língua original, mas de evolução natural e
necessária, imposta pelos usuários, os entes soberanos dessa
ferramenta.
O
assunto não termina aqui, claro. Até a próxima!
Fontes
básicas:
BECHARA,
Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2005.
CUNHA,
Celso & CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português
Contemporâneo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.
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