sexta-feira, 2 de junho de 2017

Sobre o mesmo, já que o mesmo nos rodeia

Pronomes estão muito presentes em nosso ofício de escribas. São recursos fundamentais para coesão textual, porque funcionam como setas, indicam o que vem antes, o que vem depois, evitam repetições. Há um deles que aparece com frequencia e é justa ou injustamente criticado. Trata-se de mesmo. Pensemos.

A gramática normativa prescreve que mesmo tem valor de pronome demonstrativo e deve ser empregado nas seguintes situações:

1. para reforçar identidade: Ela mesma elaborou a petição.
2. para referir-se a ser ou ideia já expressa: Todos se aproximaram, eu fiz a mesma coisa.
3. para indicar identidades idênticas: Os autores, apesar dos conflitos, faziam a mesma afirmação.

Alguns gramáticos e autores de manuais de redação criticam o uso de o mesmo, a mesma, os mesmos e as mesmas no lugar de ele, ela, eles, elas para referência a elemento já mencionado no texto, função anafórica. Assim, seriam condenadas construções como:

4. Foi enviada ao reclamado correspondência oficial, mas o endereço do mesmo não conferia com o apresentado no processo.

5. O reclamante alega que mantinha contrato com a empregadora, entretanto o mesmo não apresentou provas.

6. “Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo se encontra parado neste andar.”

Acontece que, no português europeu, essa é uma construção corrente, inclusive em textos oficiais e literários de autores de prestígio. O argumento em favor é de que pronomes podem fazer remissão a uma expressão linguística do discurso anterior, por estar aí uma função própria dessa classe de palavras. Nosso Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, não vê problema na estrutura com mesmo e questiona a crítica comum, a que chama de “mera escolha pessoal” de alguns estudiosos.

A língua tem suas manhas, além de modismos, é claro. Lembremos do malfadado “através”, que, de um momento para o outro, teve o uso restrito a situações em que o olhar atravessava. Assim, só se podia escrever “através” pela janela. Enquanto essa ideia se alastrava, linguistas e até gramáticos pediam calma, ponderação. Hoje esse rigor não existe com tanta força, mas devemos confessar que, não raro, deletamos o “através” e usamos “por meio de” só para evitar a crítica.

Diante dessas informações, o que fazer? Usar ou não “o mesmo” com função anafórica?

Não estamos aconselhando o uso. No Brasil, essa é uma construção vista com maus olhos por muita gente. A língua escrita tem forte representação social. A escolha desse ou daquele vocábulo indica o lugar do redator no mundo. Se você não lança mão desse recurso em seus textos, mantenha-se assim. Se, ao contrário, é um adepto, use-o com mais segurança, com parcimônia, porque construção repetitiva é sempre ruim para o texto, seja abonada ou não pela gramática.

Parafraseando Guimarães Rosa, escrever é muito perigoso!

Até a próxima!



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