quinta-feira, 13 de julho de 2017

Inadequação vocabular: verbo calcar



Os diferentes campos do conhecimento elegem palavras, aquelas diletas que se espraiam por todo e qualquer texto e que, de alguma forma, posicionam certa redação dentro de um grupo representativo. Raro ler um texto sobre literatura, por exemplo, que não fale em  tecitura (conjunto dos fios que se cruzam com a urdidura) ou tessitura (disposição de notas musicais), ambas usadas para qualificar a construção de uma obra.

Interessante notar que essas palavras são extraídas de atividades diversas, normalmente associadas à alguma prática artesã, que, em outros campos do conhecimento, dão contornos metafóricos mais claros ao que se deseja dizer.  E esse procedimento enriquece o texto e confere elasticidade ao uso da linguagem. O que se busca nessa prática é tornar o texto mais claro, mais palpável. É um recurso para aproximar um conceito muito teórico de um outro mais cotidiano.

Nesse percurso de descoberta de novos usos para velhas palavras, às vezes por modismos acríticos, nós redatores caímos em algumas armadilhas semânticas. É o caso do uso muito frequente da palavra calcar no sentido de apoiar-se, basear-se, fundar-se, amparar, etc. Vejamos o exemplo a seguir extraído de acórdão.

No que respeita ao pedido de reintegração, calcado no art. 118 da Lei 8.213/91, a jurisprudência pacificada por meio da Súmula 378, item I, do TST direciona no seguinte sentido (...)

Em português o verbo tem o sentido original latino de comprimir, pisar com os pés, esmagar, moer e, no sentido figurado, de desprezar, menosprezar, esconder. Assim, poderíamos dizer:

Aquela nação calcava a frustação com festividades ilusórias.

E o exemplo do acórdão poderia ser reescrito da seguinte forma:

No que respeita ao pedido de reintegração, amparado/fundado no art. 118 da Lei 8.213/91, a jurisprudência pacificada por meio da Súmula 378, item I, do TST direciona no seguinte sentido (...)

Vejam que o sentido dicionarizado de calcar nem se aproxima do almejado no texto jurídico do exemplo acima. Poderíamos argumentar que é um sentido novo. Esse argumento, no entanto, não se sustenta. Veja que, mesmo em sentido figurado, a palavra ou expressão deve ter uma origem que justifique a expansão do significado. Significados não são inventados, eles nascem e se desenvolvem historicamente. Se assim não fosse, estaríamos diariamente construindo nossa Babel, sem comunicabilidade.

Em As palavras e as coisas, Foucault afirma que “é sempre sobre um fundo do já começado que o homem pode pensar o que para ele vale como origem”. Talvez, na língua como na vida, todos precisemos de um lastro.

Até a próxima!




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